Ângela Fernandes IFE de MGF, 4º ano USF +Carandá ACeS Cávado I - Braga

O Estranho Mundo Novo: Qual o Futuro da Relação Médico-Doente na Medicina Geral e Familiar?

11/02/2020

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O Estranho Mundo Novo: Qual o Futuro da Relação Médico-Doente na Medicina Geral e Familiar?

02/11/2020 | Opinião

Resumo:

A relação médico-doente é um fator chave para a prestação de cuidados de saúde. Desde Hipócrates, esta relação humana é alvo de reflexões filosóficas e sociológicas que tentam compreender a complexidade desta relação bidireccional, imprescindível à medicina de qualidade e ao sucesso terapêutico.

À medida que a Medicina foi evoluindo, também a relação médico-doente foi sofrendo adaptações, mas sempre assentou na proximidade, no apoio e na contiguidade que permitem o estabelecimento de uma relação de confiança.

A pandemia de COVID19 trouxe uma nova realidade, e avançou-se por necessidade para a medicina não presencial. Inicialmente estas alterações eram vistas como temporárias, mas hoje sabemos que a Telemedicina veio para ficar, e vai fazer parte da nossa prática futura. Poderemos estar mais acessíveis e ao mesmo tempo mais protegidos. Poderemos poupar tempo, quebrar barreiras físicas, e acompanhar os avanços tecnológicos que nos prometem uma Medicina cada vez mais digital.

Nestes estranhos novos tempos, o futuro da relação médico-doente merece a nossa reflexão. Será a relação criada através de um ecrã ou de um telefone a mesma que nos esforçávamos por criar estando com o doente? Qual será o impacto da Telemedicina na qualidade da relação médico-doente e da prestação de cuidados a longo prazo?

Palavras-chave:  

Relação médico-doente; pandemia; telemedicina.

No meu último aniversário a minha irmã ofereceu-me uma caixa metálica prateada encontrada numa feira de velharias. No seu interior estavam uma seringa de vidro e um conjunto de 10 agulhas de diferentes calibres, e com a base banhada a ouro. Foi fácil passar umas horas a explorar cada risco e ranhura daquelas agulhas e a fragilidade daquela seringa e imaginar um médico de mala armada de couro, repleta de cataplasmas e instrumentos arcaicos, e muitas visitas domiciliárias, como ditava a medicina oitocentista.

É um exercício interessante, recordar o passado da Medicina nos tempos que correm. Percorrer a evolução do conhecimento científico e avanços tecnológicos até chegar à complexidade de cuidados que hoje prestamos aos nossos doentes. Como eram limitados os nossos predecessores, e como podemos hoje, apesar das atuais limitações, fazer tanto pelos nossos doentes.

Talvez uma única coisa terá permanecido imutável ao longo das décadas: o nosso propósito – “a saúde do meu doente será a minha primeira preocupação”. Hoje, é-nos exigida, pelas circunstâncias pandémicas, uma capacidade hercúlea de adaptação da nossa atividade, mas que fazemo-lo de forma a conseguirmos cumprir com o que sempre foi o nosso objetivo, especialmente na Medicina Geral e Familiar: estarmos disponíveis para os nossos doentes.

A COVID19 trouxe muito de novo e incerto. Nada nos preparara para a impetuosidade de uma doença que mudou tanto em tão pouco tempo. Adaptamo-nos rapidamente, e nos últimos 3 meses mudamos completamente o paradigma da nossa atividade assistencial – uma adaptação com o objetivo de limitar a propagação de uma doença assustadora e desconhecida, mas garantido ao mesmo tempo que conseguíamos manter o nosso propósito primário.

Estas adaptações foram surtindo efeito, e conseguimos abrandar as curvas. Entramos agora numa fase de “retoma gradual da atividade” prévia. A experiência dos últimos meses trouxe um relativo controlo da pandemia, mas também uma oportunidade de reflexão quanto a alguns aspetos da prática de MGF como a conhecíamos e uma curiosidade algo receosa relativa aos tempos futuros desta especialidade tão particular.

A nossa atividade clínica passou a ser maioritariamente por telefone ou email. Inicialmente houve orientações para cancelamento de grande parte da atividade assistencial programada. Depois, passamos a realizar consultas não presenciais ao maior número de doentes possível, excetuando algumas consultas a grupos vulneráveis, doentes crónicos não controlados ou quando a necessidade de exame físico fosse impreterível. De um modo geral, após a engrenagem inicial, o processo correu bem, e aprendemos várias coisas neste pequeno percurso. Foi percetível a quantidade de procedimentos passíveis de serem realizados sem a presença do utente, sem compromisso significativo da sua avaliação e seguimento.

De facto, sabemos que MGF é atualmente inundada de atos e procedimentos burocráticos, de tal modo intrincados na nossa atividade diária, que facilmente cedemos ao desgaste de um dia-a-dia em que temos de aliar a melhor prática clínica a uma repetitividade de atos não clínicos. Muitos destes passaram a ser resolvidos exclusivamente através de telefone ou email mas não só. Mesmo situações clínicas ligeiras podem perfeitamente ser resolvidas sem necessidade da presença do doente.

Também se percebeu que algumas consultas programadas podem ser feitas adequadamente por telefone. Os doentes hipertensos ou diabéticos cumpridores, bem controlados e com boa adesão terapêutica, são candidatos a consultas desta forma, se previamente acordado com o utente e garantidos todos os passos de vigilância periódica.

Numa era em que o apoio tecnológico à atividade clínica é cada vez mais sofisticado, e quando a telemedicina começava a fazer parte da nossa linguagem, demos o salto, forçosamente repentino, e entramos agora na era das consultas à distância. Foram adaptações necessárias, conduzidas por uma força maior, e primariamente concebidas como temporárias, mas que trouxeram muitas oportunidades que certamente vieram para ficar.

Criamos uma porta que se aberta pode contribuir para uma melhoria da acessibilidade, em que o doente poderá encontrar a sua equipa de saúde mais disponível e de forma mais desobstruída, libertando as consultas presenciais para aqueles que de facto necessitam. No entanto, as mudanças trazem também obstáculos, e poderemos assistir ao uso excessivo e desregulado destas modalidades de contacto com os cuidados de saúde primários, “des-capacitando” os doentes, pelo facilitismo com que podem aceder a serviços de saúde sem sair de casa, ficando cada vez menos empenhados ou menos incentivados para o empoderamento em saúde.

E que impacto terão as mudanças que hoje assistimos na forma como definimos Medicina Geral e Familiar?

A medicina familiar prima pela relação e comunicação com o doente. O holismo e a interação contínua com as famílias faz com que se estabeleça uma relação médico-doente como em nenhuma outra especialidade se consegue. Até hoje, esta relação médico-doente era conseguida e nutrida na consulta médica (presencial). O ato de consulta está estudado ao pormenor, estão definidos os passos e as técnicas de abordagem e comunicação com o doente, mas que mesmo assim não substituem o humanismo das pessoas envolvidas, que permitem o estabelecimento de uma relação única, de proximidade e duradoura.

E agora, com as consultas telefónicas e por email, qual o futuro da relação médico-doente?

Por um lado, em Medicina Familiar, uma consulta à distância beneficia da existência de uma relação prévia subjacente, que ajude a interpretar todo o contexto individual, familiar e socioeconómico do doente – o que pode fazer com que a nossa especialidade possa vir a exceler na telemedicina. Por outro, como poderá essa mesma relação prévia ser sustentada e trabalhada se a telemedicina passar a ser a regra?

Apesar de se conseguir fazer um seguimento correto de alguns doentes, utilizando check-lists e garantias de cumprimento de todos os parâmetros de vigilância preconizados, nada substitui o ver o doente. Nada substitui ver a pessoa a chegar, ver o sorriso descontraído, ou as rugas de preocupação, um esgar de dor, ou um aspeto emagrecido. Ver o estado geral, ou descobrir pequenas pérolas da semiologia médica. Ouvi-lo dizer como vai a vida ou a família, e escutar a forma como comunica. Ouvi-lo enquanto o olhamos nos olhos, e em poucos minutos percebermos a profundidade do problema que nos traz. É certo que a consulta à distância poderá incluir videochamada, contudo, a experiência em confinamento demonstrou que o contacto por vídeo nas relações humanas, por exemplo, com os familiares, não substitui o contacto físico, a linguagem não verbal, o apoio num aperto da mão nem o aconchego de um abraço.

Indiscutivelmente, nem todas as teleconsultas são equiparáveis. Não sou fundamentalista, e não acredito que “consulta sem ver o doente não é consulta”. Há mesmo muita coisa que podemos resolver sem estarmos presencialmente com o doente. Mas creio que esta não deva ser a norma.

Em 3 meses de contingência, fiquei com saudades de ver doentes. Cansei-me depressa de usar o telefone. E ficava tão desconsolada quando ligava ao doente hipertenso ou diabético “para falarmos um bocadinho e ver como está” e me respondiam “tudo bem doutora, tudo bem, só preciso de medicação”. Procuro sempre formular uma lista prévia dos assuntos que são importantes abordar, e manter uma ordem de consulta como se estivéssemos frente a frente, mas acaba por parecer incompleta, apressada, e aquém do que deveria ter sido.

Como interna do último ano da especialidade de Medicina Geral e Familiar, outra dúvida respeitosamente receosa se me coloca: a de começar a trabalhar brevemente num local diferente, com uma nova lista de utentes. O processo de adaptação e conhecimento a uma nova lista de utentes é longo e trabalhoso, mas com os constrangimentos de hoje, em que as consultas presenciais têm de ser selecionadas e planeadas, será certamente ainda mais demorado e conturbado. É preciso tempo para conhecer as pessoas, para criar uma relação próxima e humana que permita, com segurança, uma teleconsulta com a bidireccionalidade que ela exige. Questiono-me sobre como teria sido a minha adaptação ou como será, caso seja, no futuro próximo, confrontada com uma situação vivencial e laboral semelhante. Certamente um desafio ainda mais hercúleo que me exigirá uma reinvenção como pessoa e como médica.

Talvez neste “novo normal” as consultas não presenciais continuem a consumir parte significativa do nosso dia-a-dia, primeiro como continuação de esforços para conter uma doença que veio para ficar; depois porque de facto é um meio de consulta que pode ser facilitador da acessibilidade, priorização de motivos de consulta e resolução rápida e fácil de alguns motivos de consulta.

Não obstante, urge refletir em que condições e circunstâncias as consultas são passíveis de serem realizadas desta forma, e a periodicidade com que devem ser feitas – ou a periodicidade mínima com que o doente deve ser visto presencialmente. Adicionalmente, por mais consultas não presenciais que se façam, não podemos esquecer e descurar a necessidade de acesso presencial em certas circunstâncias, como os idosos que por si são um grupo vulnerável ao isolamento social e solidão.

É interessante recordar a História da Medicina e como ela nos trouxe aos dias de hoje. O que passaria pela cabeça do dono daquelas seringas personalizadas se lhe disséssemos que hoje podemos ser médicos de família sem estar com o doente? É cativante a evolução das tais tisanas e sangrias prescritas pelo médico junto ao doente no quarto nauseabundo, à evolução da relação médico-doente dos modelos paternalistas iniciais para a mutualidade que procuramos hoje, até à telemedicina, para a qual caminhamos a passos largos. Reconhecendo as suas potencialidades espero, no entanto, que não culminemos num desvirtuar da relação médico-doente que faz da Medicina Geral e Familiar tão importante, tão gratificante e tão, tão nossa.

 

 

 

 

 

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