A Gastrenterologia nacional tem vindo a fazer várias campanhas de sensibilização sobre a dimensão do assustador, mas ainda silencioso, problema de saúde pública que é o cancro colorretal. É importante que tanto a comunidade médica como não-médica se apercebam que as estatísticas em Portugal são tudo menos animadoras. Dados da Globocan1 mostram-nos que em Portugal, em 2022, foram diagnosticados 10.575 casos de cancros colorretais (o cancro mais vezes diagnosticado nos portugueses) e faleceram desta patologia 4.809 pessoas. Não é um problema de saúde que só acontece aos outros. É algo que nos pode acontecer a um amigo, a um familiar próximo ou mesmo a nós próprios.
Como tal, é importante referir que falamos de um cancro não apenas rastreável e, assim, com possibilidade de diagnóstico precoce com impacto positivo na sobrevida, mas, acima de tudo, de um cancro prevenível através da remoção das lesões pré-malignas (pólipos), algo ímpar no campo oncológico, apenas com reflexo idêntico ao nível do cancro gástrico. Nenhum outro cancro de outro sistema do nosso organismo tem a possibilidade de prevenção de forma tão “simples” como o cancro colorretal, pelo que a consciencialização e aumento da adesão ao rastreio é tão fundamental.
Não é de somenos importância referir que a maioria das pessoas com pólipos e mesmo com cancro colorretal são totalmente assintomáticas, pelo que a ausência de sintomas não deve ser encarada pelas pessoas como ausência de doença.
A inteligência artificial pode revolucionar o rastreio, diagnóstico e tratamento do cancro colorretal?
É mais correto falar-se de inteligência aumentada e não de inteligência artificial (IA), uma vez que o objetivo (especialmente na Medicina) não é substituir a decisão humana, mas sim auxiliá-la. Este conceito não é recente, sendo que já desde 1950 temos tentativas de utilização de IA na Medicina. Contudo, estando na era da Big Data, verificamos uma enorme expansão da IA, em múltiplas áreas da sociedade, nomeadamente na Medicina. Há já uns anos foram desenvolvidos vários programas de deteção (e diagnóstico) de pólipos em tempo real durante a colonoscopia. Apesar de as máquinas ainda estarem numa fase de aprendizagem e haver, nos estudos iniciais, uma sensibilidade/especificidade a rondar os 90% na deteção dos pólipos, a verdade é que este tipo de auxílio pode ser fundamental para que nenhum pólipo seja inadvertidamente falhado pelo Gastrenterologista. Neste aspeto é importante realçar que entre 6 a 28% dos pólipos podem não ser observados durante uma colonoscopia e que cerca de metade dos cancros diagnosticados após esta podem ser devidos a pólipos “falhados” durante a mesma. Estes programas conseguem, contudo, chamar a atenção do Gastrenterologista através de uma marcação automática no ecrã do que o que a máquina considera ser um pólipo e alguns sistemas são mesmo capazes de dar um resultado aproximado do tipo de pólipo que está a ser observado, sendo, inclusivamente, capazes de identificar uma lesão hiperplásica ou a existência de neoplasia – eg. CadEye Cadx (Fujifilm), um sistema de IA para deteção de lesões (CADe) e de sugestão de diagnóstico ótico (CADx) de pólipos colorretais.
O que queremos, nos dias de hoje e para o futuro, é ser ainda mais ambiciosos e encontrar algoritmos que nos permitam não apenas detetar melhor pólipos e cancros, mas também identificar as pessoas com maior risco de cancro e quais vão responder melhor a um tipo específico de tratamento. Contudo, temos de compreender que a aplicação da inteligência artificial na saúde ainda tem várias limitações e, apesar de a maioria dos estudos indicar uma melhor taxa de deteção com o auxílio da inteligência artificial, alguns estudos demonstraram que tal não se reflete numa melhoria da performance do Gastrenterologista. Importa também explicar que apesar de extremamente evoluída, a IA na Medicina ainda está em fase de aprendizagem. Como curiosidade refiro que o ChatGPT não conseguiu passar no exame de Gastrenterologia dos Estados Unidos de 2020 e 2021, apesar dos milhares de milhões de dados que dispõe em milissegundos2.
Vivemos numa era de enorme evolução das ciências computacionais que vão ser seguramente de extrema utilidade à Medicina e à Gastrenterologia em particular, mas ainda muito longe de termos uma Medicina orientada pela IA. Estamos sim cada vez mais perto de uma Medicina auxiliada pela IA, como comprovam estas novas técnicas endoscópicas.
1 – Observatório de Cancro Global da World Health Organization
2 – https://www.businesswire.com/news/home/20230522005470/en/ChatGPTflunks-American-College-of-Gastroenterology-exams-Feinstein-Institutesreport
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