É inegável tudo o que a democracia e a liberdade fizeram pela saúde de todos e todas nós. Não há saúde sem democracia, não há sociedades saudáveis que não sejam livres. Foi com enorme tristeza e preocupação que recebemos a notícia que precisamente na altura que se celebram os 51 anos da democracia, que temos um número recorde de urgências obstétricas e ginecológicas, sem esquecer as pediátricas, encerradas. É importante refletir sobre qual a razão desta limitação do acesso aos cuidados de saúde.
Como todos os problemas complexos, não há apenas uma causa que seja responsável por esta verdadeira crise. Olhando para um mapa das zonas com maior dificuldade, salta à vista a relevância que áreas com enorme pressão na área da habitação, têm no resultado final das urgências encerradas. Assim como na cobertura de médico e enfermeiro de família, pois convém não esquecer que tudo está relacionado.
Não é realista pedir a um enfermeiro que venha do norte para a Área Metropolitana de Lisboa ou Algarve, quando o custo médio de uma pequena casa é superior ao seu salário. Situação que não é muito diferente no caso dos médicos. Se o problema da habitação não for resolvido, e os custos forem impeditivos até para cidadãos com rendimentos superiores à média, o acesso aos cuidados de saúde nunca será universal.
Faltam profissionais no serviço público de saúde, neste momento, especialmente médicos especialistas em idade jovem, capazes de assumir a chefia dos serviços de urgência. E faltam pois a formação não foi capaz de acautelar a formação atempada, e a sua ausência hoje em dia prejudica a nossa capacidade de formar no futuro imediato. Além disso, o Estado criou os incentivos errados. Ao desvalorizar o trabalho e as equipas, criando alternativas bem mais apetecíveis no curto prazo, criou um sistema que empurra estes profissionais para fora da especialidade e para trabalho em prestação de serviços indiferenciados. É preciso repensar a forma como se constroi as equipas no serviço público de saúde, repondo os incentivos certos para melhorar a resposta dos serviços e, consequentemente, o acesso aos cuidados de saúde por parte dos cidadãos.
É bastante difícil gerir uma instituição tão complexa como uma Unidade Local de Saúde, sem ter capacidade de decidir sobre a contratação de recursos humanos. Os cuidados de saúde primários necessitam de um especialista em medicina geral e familiar, pois há pessoas sem equipa de saúde completa? O governo tem de autorizar. Faltam enfermeiros especialistas para assegurar o funcionamento do bloco de partos? A autorização tem de vir do ministério. É preciso um técnico superior de diagnóstico e terapêutica para se efetuar exames de imagem ao sábado, ou um técnico superior para melhorar a logística? Ou vem uma autorização central, ou nada feito. Esta falta de autonomia, e a demora na autorização das novas contratações, causam sérias entropias e constrangimentos nas instituições. Desde logo, porque limita seriamente o exercício do planeamento. Como planear sem ter o conhecimento que as necessidades de reforço de recursos humanos serão autorizadas?
Sem esquecer que após as autorizações finalmente chegarem, é necessário garantir a contratação e a retenção dos profissionais. Apesar de algumas evoluções recentes, as carreiras e salários dos profissionais de saúde, e dos restantes trabalhadores da saúde das áreas não clínicas, continuam bastante desfasados da realidade.
Melhorar o acesso aos cuidados de saúde deve ser uma das grandes prioridades da próxima equipa do ministério da saúde. Para a consecução deste objetivo é indispensável abordar a questão da habitação, organização do trabalho, incentivos, construção de equipas, responsabilidades dos profissionais, carreiras e salários. A saúde pode ser para todos. Mas é necessário vontade política para resolver estes problemas crónicos.
0 Comments