Sérgio Bruno dos Santos Sousa
Mestre em Saúde Pública
Enfermeiro Especialista de Enfermagem Comunitária e de Saúde Pública na ULSM
Gestor Local do Programa de Saúde Escolar na ULSM
ORCID

DGS para instituto público: esperança ou ilusão?

05/10/2025

Na passada terça-feira, dia 7 de Maio, a Diretora-Geral da Saúde voltou a colocar no espaço público a intenção de transformar a Direção-Geral da Saúde (DGS) num instituto público, afirmando esperar que o novo governo mantenha como prioridade a reestruturação dos serviços e a valorização da Saúde Pública.

A declaração é particularmente relevante. Vem num momento de mudança política, mas também depois de um ciclo de expectativa frustrada para os profissionais da Saúde Pública, que viram a tão falada “reforma estrutural” esmorecer nos corredores da burocracia e das hesitações políticas. Quando se esperava uma visão renovada, de estratégia integrada e com visão territorial, recebeu-se uma proposta tardia, pouco debatida, e marcada pela desilusão.

Ainda assim, há nesta afirmação da Diretora-Geral uma oportunidade. O reconhecimento de que o estatuto atual da DGS não responde às exigências dos tempos modernos pode se for acompanhado de coragem política e técnica abrir caminho a um novo ciclo. Mas é preciso evitar que se troque a forma sem mudar o conteúdo.

Transformar a Direção-Geral da Saúde num Instituto público não deve ser visto como um simples expediente técnico. A natureza desta mudança exige um debate honesto sobre o papel da Saúde Pública no sistema de saúde e na governação do país. A DGS, tal como a conhecemos, coordena programas nacionais, emite normas com força vinculativa, audita a execução de políticas e exerce autoridade de saúde em momentos críticos como se viu durante a pandemia de COVID-19. A pergunta impõe-se: que outra entidade, com responsabilidades desta magnitude, continua a operar com tão limitada autonomia administrativa e financeira?

A transformação em instituto público poderá dotar a DGS de instrumentos mais ágeis de gestão de recursos humanos e financeiros. Mas para que isso aconteça, é indispensável garantir três pilares fundamentais:

  1. Autonomia técnica e funcional – A Saúde Pública não pode estar subordinada a ciclos políticos curtos. A nomeação das suas lideranças deve obedecer a critérios de mérito e estabilidade institucional, e não a lógicas de clientelismo ou rotatividade partidária.
  2. Financiamento adequado e sustentável – Os sucessivos suborçamentos da área da promoção da saúde, vigilância epidemiológica e prevenção revelam uma miopia estrutural. A dotação orçamental da futura DGS enquanto instituto público deve ser não apenas suficiente, mas blindada a cortes arbitrários que comprometem o planeamento a médio prazo.
  3. Capacidade operacional nacional e territorial – A articulação com as unidades locais de saúde, os agrupamentos de centros de saúde e os municípios deve ser fortalecida com equipas técnicas robustas e uma presença nacional efetiva, e não meramente simbólica. A Saúde Pública precisa de estar no terreno e para isso tem de ter corpo.

Adicionalmente, importa reconhecer e valorizar quem gere este ecossistema complexo. Os profissionais de saúde pública lideram programas de vacinação, saúde escolar, prevenção da obesidade, saúde mental, saúde ambiental, entre outros. Gerem riscos sanitários, controlam surtos, planeiam estratégias populacionais e respondem em tempo real a ameaças globais. Esta responsabilidade técnica e ética exige não apenas autonomia, mas também valorização concreta — em termos de reconhecimento, carreira e estabilidade.

Num tempo em que se discute tanto a retenção de profissionais qualificados no SNS, ignorar o papel e a dedicação da Saúde Pública é um erro estratégico. O novo governo tem, pois, nas mãos mais do que uma decisão jurídica ou administrativa: tem a oportunidade de corrigir uma omissão histórica e reforçar a espinha dorsal da Saúde Pública em Portugal.

Esta proposta da Diretora-Geral da Saúde para a criação de um instituto público não é nova. Na verdade, ela representa uma das principais recomendações dos grupos de trabalho da reforma da Saúde Pública, que ao longo dos últimos anos destacaram a necessidade de um novo modelo organizacional para a DGS, que fosse mais autónomo e com maior capacidade de resposta às crescentes demandas de saúde pública no país. A mudança proposta surge, portanto, como um ponto de convergência entre a vontade política da atual liderança da DGS e as diretrizes defendidas pelos profissionais da área.

Contudo, é fundamental que esta transição não seja encarada apenas como uma formalidade ou um ponto a ser riscado na agenda política. Se não for bem conduzida, esta proposta poderá tornar-se uma ameaça à própria saúde pública em vez de uma oportunidade. Tal como ocorreu na reforma dos Cuidados de Saúde Primários, onde foi criada uma comissão de acompanhamento, também para a transformação da DGS em instituto público deve ser estabelecida uma equipa técnica multidisciplinar e política dedicada ao acompanhamento da implementação desta mudança. Apenas com essa supervisão será possível garantir que a transição traga resultados efetivos. Sem essa atenção contínua, corremos o risco de assistir a uma mudança superficial, que não resolve os problemas estruturais existentes, ou, pior ainda, possa agravá-los.

O novo governo tem, portanto, nas mãos a oportunidade de não apenas criar uma nova estrutura, mas de verdadeiramente potenciar a Saúde Pública, dotando-a dos recursos, autonomia e reconhecimento que os profissionais da área tanto merecem. Que a esperança não se perca, e que, desta vez, a reforma da Saúde Pública em Portugal seja uma mudança real e eficaz. Espero que, ao escrever este artigo, o ciclo de desilusão da reforma da saúde pública que descrevi no ‘Observador’ em 2024 não se repita nos anos vindouros, e que, finalmente, vejamos uma reforma verdadeira e eficaz que beneficie toda a população portuguesa.

 

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