António Ricardo Miranda: Presidente da Associação OUVIR

O discernimento: um problema crítico global

05/16/2025

Numa era em que a quantidade de informação disponível supera largamente a nossa capacidade de a assimilar com sentido crítico. Nunca a humanidade teve tanto acesso ao saber, à ciência, à opinião e à falsidade como agora. E, paradoxalmente, nunca estivemos tão confusos, tão desorientados, tão frágeis no exercício do discernimento. Este não é apenas um desafio do indivíduo moderno; é, como sublinhou recentemente o Papa Leão XIV, um problema global, transversal a idades, culturas e geografias, mas que afecta com particular severidade os mais jovens.

O discernimento — essa faculdade interior de distinguir o verdadeiro do falso, o justo do injusto, o essencial do acessório — parece estar em crise. Assistimos a um mundo onde opiniões se confundem com factos, onde o ruído se impõe sobre o silêncio reflexivo, e onde as emoções moldam decisões que deveriam nascer da ponderação. Este fenómeno não é meramente cultural ou educacional: tem uma dimensão profundamente psicológica.

Segundo a psicologia do desenvolvimento, o discernimento começa a formar-se na adolescência, à medida que a maturação cerebral favorece a capacidade de reflexão crítica, antecipação de consequências e empatia. Contudo, este processo natural está hoje severamente condicionado por factores externos: redes sociais, algoritmos de confirmação, estímulos permanentes e ausência de pausas cognitivas. Os jovens estão constantemente expostos a conteúdos que reforçam bolhas de pensamento, promovem respostas rápidas e superficiais, e reduzem o tempo de ponderação necessário ao verdadeiro discernimento.

Esta aceleração cognitiva compromete o amadurecimento saudável. Quando tudo acontece demasiado depressa — quando um “scroll” vale mais que uma conversa, quando um “like” substitui o elogio real, e quando a validação externa eclipsa a consciência interna — o discernimento perde terreno. Não se trata apenas de uma questão de informação, mas de formação.

O Papa Leão XIV, na sua primeira encíclica, foi peremptório ao apontar o discernimento como um dos maiores desafios espirituais e sociais do nosso tempo. Falou não apenas da dificuldade em distinguir o bem do mal, mas da ausência de critérios para o fazer. “Como pode a juventude discernir”, perguntou ele, “se o mundo a ensina a valorizar o efémero, a confundir liberdade com capricho e a substituir a consciência por algoritmos?”

É uma interrogação que ecoa nas escolas, nas famílias, nas instituições públicas. Quando se perde a capacidade de discernir, perdem-se também os alicerces da liberdade. O ser humano verdadeiramente livre não é aquele que faz tudo o que deseja, mas sim aquele que sabe o que deve desejar. E essa sabedoria não é inata — é aprendida, cultivada, amadurecida.

Neste contexto, importa recuperar a centralidade da formação do juízo crítico nas instituições educativas. A escola não pode ser apenas um lugar de transmissão de conteúdos; deve ser, acima de tudo, um espaço de treino da consciência. Urge ensinar a escutar, a argumentar, a duvidar com método, a contemplar o silêncio e a tolerar a ambiguidade. Só assim se criam cidadãos capazes de resistir à manipulação, ao populismo e à ditadura do imediato.

Mas o problema não se esgota na juventude. Os adultos também parecem cada vez mais reféns de certezas fáceis e polarizações tóxicas. A cultura do “nós contra eles”, a constante indignação digital, e o desdém pela complexidade revelam um défice colectivo de discernimento. A democracia, enquanto sistema baseado na razão pública e no confronto civilizado de ideias, está em risco se os cidadãos perderem a capacidade de distinguir argumento de falácia, verdade de propaganda.

A psicologia alerta ainda para o impacto da ansiedade generalizada nesta perda de discernimento. O medo, seja ele social, económico ou existencial, tolda a razão. Num estado permanente de alerta, o cérebro tende a responder com impulsividade, não com ponderação. E é precisamente neste estado que muitos jovens vivem hoje: pressionados por padrões inalcançáveis, expostos ao escrutínio contínuo e privados de tempo para a introspecção.

Como sair deste ciclo vicioso?

Em primeiro lugar, é necessário devolver tempo e espaço ao pensamento. Isso implica desacelerar, criar espaços de silêncio, fomentar o diálogo profundo. Em segundo lugar, importa valorizar o erro como etapa do discernimento. Numa cultura que idolatra o sucesso instantâneo, falta espaço para o amadurecimento gradual das ideias e para a aprendizagem pela reflexão. Em terceiro lugar, devemos recuperar mestres — figuras de referência, não apenas no saber técnico, mas na sabedoria de vida. O discernimento não se aprende sozinho; precisa de modelos, de testemunhos, de exemplos concretos.

Finalmente, é urgente reabilitar a dimensão espiritual do discernimento. Não se trata de proselitismo religioso, mas de reconhecer que há no ser humano uma sede de sentido que ultrapassa a lógica utilitária. A espiritualidade — seja ela cristã, filosófica ou existencial — é o antídoto contra a fragmentação interior. E é neste sentido que a mensagem do Papa Leão XIV se revela tão actual: sem um centro interior, o discernimento torna-se impossível. E sem discernimento, o mundo perde o rumo.

O problema é global, sim. Mas a solução começa em cada um de nós.

 

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