Mário Jorge Neves, médico

Que bases para a discussão de um novo sistema remuneratório dos médicos?

06/04/2025

As questões salariais constituem sempre um tema central na intervenção sindical.

Ao longo dos vários anos, as remunerações dos médicos, como dos outros setores profissionais da Administração Pública, sofreram os impactos das vicissitudes políticas dos vários contextos governativos.

Alguns aspetos que convém lembrar é que os médicos internos durante as décadas de 1940, 1950 e parte da década de 1960 não só não auferiam qualquer remuneração como ainda tinham de pagar uma quantia para terem direito à formação.

E mesmo os médicos especialistas não dispunham de um ordenado definido, auferindo  uma verba “simbólica” .

Logo após o 25 de Abril de 1974, com a restauração do regime democrático, foi estruturado um sistema salarial global para toda a Administração Pública baseado no “sistema de letras”.

Os níveis remuneratórios estavam identificados pelas letras do alfabeto, situando-se o vencimento mais alto na letra A.

Já nessa altura, os médicos eram a única profissão de licenciatura superior cujo topo da sua carreira, então chefe de serviço, ficava pela letra B.

Esta injustiça foi sempre objeto de contestação reivindicativa das organizações médicas até que em 1988 foi criada uma comissão governamental para a reformulação salarial da Administração Pública presidida pelo Prof. Dr. Sousa Franco.

O relatório elaborado por esta comissão, que ficou conhecido pelo Relatório Sousa Franco, procedeu a um levantamento rigoroso e de caracterização das múltiplas distorções salariais e de carreiras profissionais e apresentou um conjunto de medidas de solução.

No caso dos médicos, o “Novo Sistema Retributivo”, como foi designado, foi negociado em simultâneo com a revisão do diploma das carreiras médicas.

A discussão destas matérias vinha sendo desenvolvida articuladamente entre as organizações sindicais médicas e objeto de assembleias de médicos para possibilitar a recolha alargada de contributos que melhor pudessem estabelecer um conhecimento detalhado de todas as particularidades do trabalho médico, não permitindo que subsistissem injustiças.

Esta nova grelha salarial dos médicos veio possibilitar o maior salto salarial obtido, com a publicação do novo diploma das carreiras médicas ( DL, nº 73/90).

Em 1997/98, iniciou-se a implementação do Regime Remuneratório Experimental (RRE) da Clínica Geral e foram definidos os Centros de Responsabilidade Integrados (CRIs ) para as unidades hospitalares.

No ano seguinte, foi aprovado um diploma relativo aos Centros de Saúde com a criação das Unidades de Saúde Familiar (USF).

Nestas modalidades, o modelo remuneratório possuía 2 componentes: remuneração base, resultante do regime de trabalho, categoria e escalão salarial; e uma remuneração variável, a calcular em função da avaliação do desempenho baseada em critérios objetivos e parâmetros mínimos de produtividade.

É amplamente reconhecido que as necessidades de aumento da produtividade e de aplicação de programas de melhoria contínua da qualidade, com a consequente mudança organizacional, impõem a motivação e envolvimento dos profissionais, bem como a definição de incentivos pecuniários, extra salariais, e não pecuniários.

Em torno dos sistemas remuneratórios tem-se desenvolvido uma infinidade de discussões no plano internacional, coexistindo uma grande multiplicidade de opções e sem que alguma vez fosse mostrado um modelo claramente superior.

No caso do setor da saúde, existe uma especificidade tal que torna ainda mais difícil encontrar uma solução com uma margem razoável de consenso.

Neste setor, verifica-se uma grande multiplicidade de intervenientes e uma grande heterogeneidade dos “produtos fabricados” o que coloca dificuldades acrescidas na padronização das medidas de produtividade e na delimitação do campo de medida.

A experiência acumulada torna evidente que as medidas de produtividade nos serviços de saúde devem estar ligadas à organização do processo do trabalho.

Ao contrário do que dizem alguns comentadores que por aí pululam, não é ao nível dos recursos humanos que se centram os mais importantes meios para alcançar uma melhoria da produtividade.

Em termos gerais, a melhoria da produtividade envolve vários fatores nomeadamente: desenvolvimento de melhores métodos para realizar as atividades, incluindo a reestruturação do trabalho; redução dos desperdícios; maior capacidade de aquisição de produtos para as várias atividades; formação contínua dos profissionais e garantia da sua diferenciação técnico-científica; métodos de brainstorming; processo de análise “problem-solving”.

Por outro lado, também têm sido identificadas práticas de gestão que constituem barreiras significativas no aumento da produtividade: práticas de gestão autoritárias e com sucessivas falhas no acompanhamento da atividade dos serviços; não envolvimento e até hostilização dos profissionais; não reconhecimento institucional pelas boas práticas de trabalho; e ausência de oportunidades para a progressão profissional.

Tendo em conta as várias experiências internacionais ao longo de várias décadas, têm existido vários tipos de pagamentos:

– Pagamento por serviço – é pago o serviço prestado, maximiza o número de atos médicos, os efeitos previsíveis são ausência de prevenção, recurso a alta tecnologia, indução da procura e sobreutilização.

– Pagamento por salário – é pago o tempo de trabalho, minimiza o esforço no trabalho, coloca num lugar central a progressão e a diferenciação profissionais, promove o crescimento dos quadros profissionais.

– Pagamento “per capita” – é paga a assistência a um indivíduo (afiliação), minimiza os custos assistenciais, promove a seleção de riscos e medidas preventivas.

Pagamento por duração do internamento hospitalar- é pago ao hospital por cada doente e por cada noite, maximiza o número de internamentos, e minimiza o custo médio de cada internamento, aumenta a duração média de cada internamento, promove internamentos desnecessários e provoca a ausência de cirurgia ambulatória.

– Pagamento por internamento hospitalar- o pagamento baseia-se por cada doente internado, independentemente da duração do internamento, maximiza o número de internamentos e minimiza o custo médio de cada um deles, promove o aumento do número de internamentos e a redução da duração média dos internamentos, induz internamentos desnecessários e reinternamentos.

– Pagamento por orçamento – o pagamento é feito por uma atividade num determinado período de tempo, implica uma implementação mais dispendiosa e com uma planificação adequado, bem como sistemas de informação rigorosos.

– Pagamento por caso ou diagnóstico – é uma modalidade de pagamento independente do número e tipo de atos, e é feita em função de uma tabela ponderada das várias patologias.

Nos vários países da Europa existem diferentes modalidades, nalguns casos mistas.

A evidência de todas estas experiências é que não existe, como já referi, nenhuma modalidade que claramente possua uma superioridade relativa às restantes.

Já no Relatório sobre as Carreiras Médicas publicado em 1961 era proposto um salário com uma componente fixa e com uma componente variável.

A discussão de um sistema remuneratório para os médicos, implica uma abordagem simultânea de outras áreas da atividade dos serviços de saúde.

Tem de haver medidas articuladas com a gestão dos serviços, com a estrutura da carreira profissional, com o imperativo de fixar médicos aos serviços de saúde e com a capacidade em atrair médicos para as zonas interiores do país e para outras onde as carências sejam muito marcantes.

Existe uma clara distinção a fazer entre os serviços públicos de saúde (SNS) e os serviços privados, dado que se tratam de áreas distintas de intervenção e de negociação.

No caso das entidades privadas, terão de se processar negociações sindicais, com cada uma delas, com vista à celebração de Acordos de Empresa (AE), enquanto no SNS as negociações far-se-ão com o Ministério da Saúde para todos os serviços públicos de saúde.

Assim, a gestão das unidades de saúde tem de ser objeto de uma nova legislação que ponha fim a quase 40 anos de comissariado político e de uma gestão desagregadora do SNS.

Os espartilhos totalitários de gestores arrogantes, sem prestação pública de contas dos seus mandatos, têm de ser erradicados e substituídos por mecanismos democráticos que estimulem a participação dos profissionais de saúde nas instâncias de decisão, bem com o integral respeito pela autonomia e independência técnico-científica da nossa profissão.

Os médicos têm de participar nos processos de discussão interna quanto aos objetivos a estabelecer por cada estabelecimento de saúde a nível da prestação dos cuidados de saúde e das prioridades de intervenção durante o mandato dos órgãos de gestão.

A carreira médica terá de incluir um sistema remuneratório, onde além do salário base se incluam variáveis adicionais em torno de vários parâmetros a definir com urgência, na base, por exemplo, de contratos-programa estabelecidos com cada serviço.

A chamada avaliação de desempenho deve ser rapidamente eliminada porque já foram muitos os anos que provou não ser suscetível de se aplicar aos médicos, tendo-os lesado, a cada um, em muitos milhares de euros desde o início da sua publicação.

Penso que esta questão deveria ter um carácter prioritário nas negociações salariais.

Eliminar essa farsa de avaliação e retomar o sistema das diuturnidades, por anos de serviço efetivo.

Os diretores de serviço e de departamento devem dispor de poderes legais alargados que aumentem a sua responsabilidade e a sua autonomia orgânica.

O reconhecimento institucional dos êxitos do trabalho médico tem de ser uma constante da gestão dos serviços de saúde.

Esta abordagem global e multifacetada é a forma inadiável mais adequada de promover uma maior fixação dos médicos ao SNS, se o objetivo de um governo for garantir o cumprimento constitucional do direito à saúde e de não permitir que este direito humano seja mercantilizável.

As várias organizações médicas estão obrigadas, com urgência, a promover um amplo debate em torno desta matéria nuclear, sob pena de perderem toda a credibilidade perante os médicos e os poderes constituídos e de serem consideradas dispensáveis de qualquer processo de construção das soluções.

Mãos à obra, já!

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