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Sagrado efeito placebo *
No Princípio era o Placebo. E o Placebo estava com Deus. E o Placebo era Deus. Diabolizado pela ciência “positiva”, o “efeito placebo” é sempre trazido à baila quando se fala em terapias, sobretudo se persiste o ensejo de as apontar como ineficientes, resultado de um preconceito da ciência “stricto sensu”, para a qual a “verdade” existe como coisa, de alguma maneira, alcançável e perdurável.
Nem a ciência “positiva” é despida de subjectividade, modelos, ideações, nem ela, pelo menos no que ao “humano” respeita, pode assegurar uma “verdade” de modo mais ou menos imperecível, nem o “efeito placebo” é realmente “ineficiente”, ele actua no organismo mediante o “mecanismo dos opiáceos”, assegurando certo grau de alívio, senão mediante a modulação de intrincados enredos somáticos, que permite compensar e/ou re-solver a patologia e/ou o sofrimento de diversas formas “subconscientes”.
No que ao sofrimento diz respeito, no que ao “humano” interessa, frequentemente é impossível (con)sagrar uma verdade, bastas vezes achamos ser verdadeiro o que entra no intervalo das nossas noções, da nossa realidade, ou o que uma autoridade – quiçá, científica – afiança. A “verdade de facto” implica um conhecimento vasto, “na verdade”, inalcançável pela inteligência humana. Por vezes, é mais efectivo sagrar a verdade “particular”, o que se torna vero para o sujeito, o que se transtorna seu “princípio”, artifício de partida e chegada, rede de segurança identitária. E porque “No Princípio era o Verbo”, a “palavra” age incessantemente como patriarca da realidade, torna-se a própria verdade.
Em desprimor do dogma “materialista”, o dogma “espiritual”, e o “pós-moderno”, recentra a importância do “Verbo”, a genuinidade do que é primevo, sagrado. A nova “razão” é subjectivista, pode advir da crença, da razão intuitiva enformada pela fé, a devoção, o amor (a paixão), ela exige a vivência directiva, imediata, das coisas. A verdade do sujeito é a grande verdade, que importa que o não seja no “facto”?
Porventura, na relação, o terapeuta começa por recomendar sua “autoridade”, operando esta enquanto “estrutura”, dogma securizante. Existe, claro, o risco de influir na verdade (preexistente) do paciente. Esta influência pode ou não conter em si-mesma um “ideal”, uma ética/moral, um paradigma da realidade, agindo como proa. O que o paciente “recebe” é logicamente diferente do que lhe é oferecido, o que o primeiro “constrói” tem indefinidamente algo de seu. O dogma alheio torna-se o dogma do próprio. O deus/terapeuta torna-se o deus/paciente (estruturado, “livre”, poderá, a partir daqui, sentir o ímpeto do terapeuta como “impositivo”, “castrador”), especialmente se o terapeuta esquivar os paternalismos desproporcionados. A via pode sempre ser errónea, falsa, ilusória, mas o destino “torna-se” vero, (re)constrói a verdade com que o “sujeito” passará a “ser”.
Toda a realidade humana é um placebo gigantesco, titânico. A religião, por exemplo, implica um dogma, uma crença, ela pode começar por ser “estranhada”, mas acaba muitas vezes por ser entranhada. A “verdade” de um deus faz a “verdade” de um novo deus. A verdade dos nossos pais transtorna-se a nossa verdade, mais tarde a verdade dos primeiros pode ser encarada (de novo) como estranha. Uma mentira política torna-se “verdadeira” se for sentida enquanto tal, e se fizer a felicidade de uns tantos.
A verdade “paternalista” conforta incessantemente, tal qual o “placebo”. Ela é requerida à “estrutura”. O problema, a existir, estaria, essencialmente, na manutenção “ad aeternum” do conforto, dos deuses alheios, um pouco como se se tratasse de um terapeuta que perpetua o tratamento (trata-mente), ou de um pai que possibilita ao seu filho conservar-se eternamente na casa dos progenitores. Daí a crítica de Jaspers às psicoterapias (vide «O médico na era da técnica»), visto o terapeuta servir de mediador entre o paciente e a (sua) verdade, o que, apesar de tudo, não evita que o processo possa ser exaustado.
O comprimido, a pílula da felicidade, permite, igualmente, exaustar o sofrimento do “ser”, talvez na base mais “paternalista”, mas, mesmo assumindo um pressuposto de “liberdade”, uma salvação será sempre temporal, não levará muito tempo a conhecer o seu estertor. Assim sendo, deixemos que o placebo actue recriando o ténue, efémero, lenitivo da esperança (lembro que digo tudo isto, partindo de um “pressuposto” (da evicção) do “sofrimento”, em que a verdade “subjectiva” e o seu modelo comummente “holístico” não são facilmente equiparáveis ao que se versa no modelo “biomédico” da patologia “fisicalista”, se bem que, para este último, não morreram nem o “somático” nem o efeito placebo, os quais não devem, no entanto, escamotear os aspectos mais palpáveis da problemática em questão), ao mesmo tempo que deixamos, também, que se exauste nosso sentimento de culpa face à renegação da suposta “verdade de facto”, a qual, a bem ver, sublima um condicionamento “modernista”. Digo isto com a melhor das intenções, não me passaria pela cabeça enganar-vos, mentir-vos, podeis confiar em mim, se eu acredito, vós podeis acreditar também.
* Texto publicado originalmente na obra «A Síntese (im)Perfeita. Sobre o tempo, a culpa e o Nada» (Edições Mahatma, 2017)
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