Mário André Macedo Enfermeiro Especialista em Saúde Infantil

Contributos da saúde pública no combate à corrupção

04/10/2021

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Contributos da saúde pública no combate à corrupção

10/04/2021 | Opinião | 0 comments

É impossível não escrever sobre o julgamento (pré-julgamento para ser mais exato) da década. Um ex-primeiro ministro será julgado por três crimes de branqueamento de capitais, três crimes de falsificação de documentos, tendo sido apelidado pelo juiz de instrução como corrupto, embora, pela prescrição deste o caso ficará apenas com a condenação moral. Arrisca até 12 anos de prisão.

Sou enfermeiro, não me arriscarei a fazer considerações jurídicas sobre o caso. Venho antes mostrar o que uma abordagem de saúde pública, moldada no combate à epidemia poderia ajudar no combate à corrupção. A única forma de invertermos o crescimento da pandemia será pela redução da transmissibilidade da infeção. Esta frase desdobra-se em quatro dimensões que se complementam: interrupção das cadeias de transmissão, redução das oportunidades de contactos, diminuição da probabilidade de transmissão e a redução da suscetibilidade à infeção.

Adaptando para o combate à corrupção, a interrupção das cadeias de transmissão envolve criar uma cultura que não permita a reprodução social da corrupção. Implica um reforço das equipas especializadas neste tipo de crime, assim como, a criação de leis que impeçam a prescrição ao fim de apenas 5 anos. Para quebrar as cadeias de transmissão, a atuação tem de ser precoce e assertiva. A investigação tem de ser célere e optar por iniciar o processo de forma rápida, ao invés de esperar por um infindável número de casos, produzindo um mega-processo, muitas vezes com pontas menos sólidas que descredibilizam todo o processo.

A redução da oportunidade de contactos é uma das importantes medidas para conter este crime de oportunidade. Há uma ausência de controlos internos que permitam rapidamente identificar comportamentos não recomendáveis. Os exemplos são inúmeros e transversais a todas as áreas, da política, saúde, segurança ou educação. Torna-se difícil explicar como é possível que um ou dois indivíduos consigam, durante um longo período de tempo, obter rendimentos de forma indevida com base na sua atuação regular nos serviços públicos, sem que ninguém tenha dado por isso. É igualmente necessário criar um período de nojo, entre a execução de cargos públicos e a transição para cargos de gestão privada que estavam previamente na sua dependência. Também é incompreensível, como ainda é possível que chefias de serviços públicos exerçam atividade complementar em serviços concorrentes no setor privado. Trata-se de um claro conflito de interesses, que cria oportunidades para desviar recursos e mina a credibilidade dos serviços.

Nem sempre é possível reduzir os contactos, pelo que muitas vezes temos de falar na diminuição da probabilidade de transmissão. A adoção de medidas de saúde pública, usando máscara e medidas de higiene, traduz-se, neste caso, em medidas que diminuíam a oportunidade deste crime ocorrer. Ter atas de reuniões com grupos de interesse, haver dados para ser possível prevenir e punir o enriquecimento ilícito, reforçar a transparência em determinados níveis de decisão e simplificar o acesso à informação dos processos relevantes da administração pública.

Por fim, mas talvez das medidas mais importantes, a redução da suscetibilidade da população. Não temos vacinas nem podemos apostar na imunidade natural. Mas podemos promover um capital social que puna estes atos. Que seja socialmente tão reprovável ser corrupto, que qualquer ato signifique o fim de qualquer carreira política ou pública. Não se trata de educação nem escolaridade, também não se trata de riqueza pessoal, trata-se de viver numa cultura que não tolere a corrupção. Oeiras é um caso paradigmático, mas não único, onde ainda ouvimos “ele rouba mas faz”, o que demonstra que a imunidade à corrupção demora muito mais tempo a adquirir que aquilo que seria desejável.

Tal como no combate à pandemia, não devemos esquecer a vertente da comunicação e gestão de expectativas. O principal objetivo de um julgamento é a obtenção de justiça. As considerações políticas são efetuadas nas urnas. A comunicação na justiça tem de ser necessariamente calma e recatada. Não precisamos de juízes estrelas mediáticas, precisamos de juízes competentes e céleres. É importante uma comunicação simples, que preserve o segredo de justiça e não crie condições para julgamentos em praça pública.

Os custos da corrupção superam os dezoito mil milhões de euros por ano, duas vezes o orçamento do serviço nacional de saúde. É um assunto que tem importância material e moral, que afeta as fundações da própria democracia, pelo que deve envolver toda a comunidade na sua resolução. Um Portugal mais próspero e justo para todas e todos nós, também depende da consecução das estratégias de combate à corrupção.

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