Prof. João Filipe Raposo: “O controlo da diabetes não deve ser glucocêntrico”

06/18/2021
Prof. João Filipe Raposo Presidente da Sociedade Portuguesa de Diabetologia e diretor clínico da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP)

“As pessoas com diabetes possuem um risco cardiovascular aumentado pela própria diabetes, pela hipertensão arterial e pela dislipidémia”, assinala o Prof. João Filipe Raposo, presidente da Sociedade Portuguesa de Diabetologia e diretor clínico da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP). “Em relação ao risco de eventos cardiovasculares, os dados mostram que o controlo da pressão arterial é até um pouco mais importante do que o controlo glicémico”.

HealthNews (HN) – A hipertensão tem características específicas nas pessoas com diabetes? Existe uma maior prevalência de hipertensão noturna?

João Filipe Raposo (JFR) – As pessoas com diabetes têm, frequentemente, uma forma de neuropatia, menos falada e menos conhecida, denominada neuropatia autonómica, que está associada a várias alterações dos mecanismos de controlo do nosso corpo. Um deles tem a ver, exatamente, com os mecanismos que regulam quer a pressão arterial, quer a frequência cardíaca.

Normalmente, há uma queda da pressão arterial e da frequência cardíaca durante o período noturno mas as pessoas com diabetes, especialmente quando associada a esta forma de neuropatia, perdem essa regulação circadiana.

A hipertensão noturna obriga a um ajuste de terapêutica para que mantenha a sua eficácia durante as 24 horas do dia, se possível reproduzindo essa queda noturna da pressão arterial.

HN – A hipertensão noturna pode conferir um risco acrescido de eventos cardiovasculares?

JFR – Está descrito que existe, efetivamente, um maior risco de eventos cardiovasculares.

Gostaria de chamar a atenção que as pessoas com diabetes devem ter os valores da pressão arterial controlados porque possuem um risco cardiovascular aumentado pela própria diabetes, pela hipertensão arterial e pela dislipidémia.

Normalmente, destes três fatores, o mais simples de controlar é a dislipidémia, desde que a pessoa faça a medicação prescrita na dose certa.

A diabetes, em contrapartida, nem sempre é fácil de controlar. O mesmo sucede com a hipertensão porque pode implicar a toma de mais do que um tipo de fármacos, e mais do que uma vez por dia, justamente para se tentar aquele controlo das 24 horas que referimos antes.

Fala-se muito da hipertensão “da bata branca” mas temos que perceber que essa resposta ao stress, que aqui é representada pela bata branca dos profissionais de saúde, pode acontecer noutros momentos da vida. É por isso que queremos que as pessoas tenham a pressão arterial controlada, não só quando estão em repouso e no seu ambiente familiar, mas também nos vários momentos do dia.

Muitas vezes quer os doentes, quer os profissionais de saúde, caem num certo facilitismo e aceitam valores que não deveriam aceitar.

Claro que, tal como os outros objetivos na diabetes, este também deve ser personalizado, de acordo com a idade da pessoa e a existência ou não de patologia cardiovascular. Mas é importante que todas as pessoas tenham consciência de que, em relação ao risco de eventos cardiovasculares, os dados mostram que o controlo da pressão arterial é até um pouco mais importante do que o controlo glicémico.

HN – A sensibilização, o ensino, a seleção e ajuste de fármacos, tem que ter sempre por base a avaliação do risco individual?

JFR – A Associação Europeia de Cardiologia (ESC), nas suas recomendações conjuntas, considera que a maior parte das pessoas com diabetes têm um risco elevado ou muito elevado de eventos cardiovasculares. Agora, a individualização é necessária porque as pessoas são diferentes umas das outras, têm idades e níveis de risco também diferentes.

Desde há muitos anos que a nossa mensagem assinala que o controlo da diabetes não deve ser glucocêntrico, isto é, não deve estar centrado apenas no controlo da glicémia. Aquilo que se pretende, hoje, é chamar cada vez mais a atenção para esta relação muito evidente entre hipertensão arterial, dislipidémia e risco cardiovascular nas pessoas com diabetes.

A diabetes e a hipertensão, cada uma por si, são uma das principais causas para progressão para doença renal. E combinadas?

Quando combinadas ampliam essa associação. Uma boa parte das pessoas que, hoje em dia, fazem diálise e necessitam de transplante, têm diabetes e hipertensão.

Já existem dados oficiais sobre o impacto da pandemia de Covid-19 na evolução da diabetes?

Estamos a pedir esses dados, que serão publicados posteriormente no Observatório da Diabetes, da Sociedade Portuguesa de Diabetologia.

Durante o período da pandemia, quem estava em tratamento, na sua maioria, manteve-se em tratamento. O problema maior tem a ver com os programas de rastreio do pé diabético e da retinopatia diabética, por um lado, e os programas de diagnóstico da diabetes propriamente dita.

Na diabetes tipo 2, as pessoas precisam de fazer avaliações laboratoriais de rotina médica que, provavelmente, não foram feitas. Por outro lado,  muitas consultas presenciais foram interrompidas, assim como o programa de rastreio da retinopatia diabética, que também obrigava a um contacto muito próximo entre o técnico e a pessoa com diabetes.

Depois de quase um ano de interrupção deste processo de rastreio, urge retomá-lo, assegurar provavelmente o tratamento da retinopatia diabética a muito mais pessoas, por um lado, e do pé diabético, por outro. Eventualmente, com situações mais graves. Esse é o nosso receio.

HN – O trabalho da APDP foi reconhecido pela OMS como um exemplo de Boas Práticas durante a pandemia. Como encara esse reconhecimento?

Com satisfação. É bom sermos reconhecidos, fora de casa, pelo trabalho que desenvolvemos, e pela qualidade e inovação que introduzimos na prática dos cuidados em diabetes.

No documento publicado pela OMS, a APDP surge como o exemplo de como, durante a primeira fase da pandemia, foi possível delinear estratégias para manter as pessoas contactáveis e contactadas, com a definição dos objetivos desses contactos, garantindo o combate ao isolamento e percebendo as necessidades das pessoas. Numa segunda fase, a retoma às atividades clínicas presenciais, com a adoção das medidas de segurança e de alternativas que permitissem retomar os serviços o mais cedo possível, nomeadamente de rastreio da retinopatia diabética. Nalguns casos, com o recurso a espaços alternativos, em colaboração com os cuidados de saúde primários e as autarquias.

HN – As pessoas com diabetes correm maior risco em caso de infeção pelo SARS-CoV-2. Os números da vacinação começam a deixá-lo mais tranquilo?

JFR – As pessoas com diabetes sabem que são um grupo de risco aumentado para as formas graves de Covid-19 e, por isso, uma boa proporção adotou todas as medidas de segurança e de confinamento que estavam indicadas para a sua situação.

Já foram vacinados muitos doentes ou pelo critério de idade, com o qual concordamos, ou porque tinham muitas complicações associadas à diabetes, nomeadamente cardiovasculares ou renais.

Nesta segunda fase da vacinação, as pessoas com diabetes constituem um grupo prioritário e é nossa perceção de que estão a ser chamadas.

À medida que vamos caminhando para a imunidade de grupo, mesmo as pessoas não vacinadas ou que não tenham tantos anos de diabetes, de alguma maneira também estarão protegidas da infeção e das formas graves de Covid-19.

Entrevista de Adelaide Oliveira

 

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