Carta aberta a sua Excelência o Sr. Ministro da Ciência Tecnologia e Ensino Superior, Sr. Professor Doutor Engenheiro Manuel Heitor
As palavras que dirigistes ao povo não são apropriadas para estabelecer a concórdia e trazer felicidade (…)
Confúcio Chu-King I.12
Perante as declarações que Vossa Excelência emitiu sobre a formação dos especialistas em Medicina Geral e Familiar (considerá-los-á, ainda, V. Exª, como tal? especialistas?) e, passo a citar: “a formação de um médico de família não exige o mesmo nível que um especialista em oncologia ou em doenças mentais.”, entende este modesto medico rural que não serão irrelevantes os reparos que possam suscitar.
Permita-me V. Excelência dois dedos de prosa: o primeiro para, humildemente, fundamentar a discordância e o segundo para cogitar sobre eventuais consequências de tais afirmações.
A formação
É inútil contradizer; basta contrapensar
Benevente y Martinez
Na qualidade de Ministro do Ensino Superior, entre outras incumbências, de V. Exª é esperado que tenha ideias sólidas sobre os desafios que os licenciados formados pelas Universidades Portuguesas irão enfrentar nas respetivas profissões. Portanto, é menos desculpável que, por exemplo, eu simples, médico de família, profira juízos desacertados sobre a formação de engenheiro mecânicos versus engenheiros civis, do que V. Exª ao pronunciar-se sobre a exigência formativa de qualquer aluno universitário, nomeadamente inscrito nas faculdades de medicina. Posto isto, manifesto o meu (seguramente compartilhado por muitíssimos profissionais de saúde) total desacordo sobre o nível (melhor dizendo o desnível) da exigência da formação da Medicina Familiar (MF) face, nomeadamente, as duas especialidades citadas e, mutatis mutantis,a todas as outras.
A psiquiatria, especialidade de considero a mais difícil do ponto de vista epistemológico, tem uma área de atuação relativamente circunscrita (e digo relativamente, por que em medicina o paradigma é a interseção de áreas de atuação): doenças do foro mental. Ora esta é um também um domínio dos médicos de família, muito embora se limitem a atuar nas patologias mais leves, muito menos complexas e consideravelmente mais fáceis de manejar: depressões ligeiras a moderadas, ansiedade reativa, distúrbio de luto, etc., remetendo para psiquiatras as psicoses, depressões major, risco de suicídio, etc., etc.. Sem dúvida que o grau de preparação para lidar com a psicopatologia por parte dum MGF, será muito inferior ao dum psiquiatra. Só alguém padecendo de avançada doença mental discordaria.
Passando à oncologia o mesmo se poderá dizer: incomparavelmente mais competências são requeridas ao oncologista que ao MF, nesta área. Mas se o MF não trata cancros é-lhe exigido saber diagnosticá-los, pelo menos “cheirá-los”, e saber encaminhá-los devidamente, o que, saiba V. Ex, não é tarefa tão banal quanto possa imaginar. Este segundo exemplo que V. Exª. escolheu é deveras oportuno para demonstrar a complementaridade imprescindível entre especialidades no tratamento de patologias complexas e graves: sem o recurso às diversas áreas cirúrgicas e à medicina nuclear a oncologia é incapaz de tratar, isoladamente, a maioria dos tumores malignos. Portanto, temos aqui uma especialidade que por muito exigente que seja em competências é frequentemente insuficiente para cumprir o seu objetivo, sem a ajuda de uma miríade de outros especialistas. Porém, esta conclusão em nada diminui a admiração que os oncologistas nos merecem a todos (certamente incluindo V. Exª. e os médicos) e o reconhecimento da necessidade de formação longa para missão de tal monta. Conclui-se que a necessidade de recorrer a outras especialidades não significa escassa bagagem de conhecimentos ou competências. Que é como quem diz: se não é motivo automático de descrédito a necessidade de recorrer a outros especialistas para um oncologista, também não o será para um médico de família.
Ora aqui chegados, é mister dizer que os conhecimentos de psiquiatria ou oncologia exigíveis a um MF são mais avultados que os de psiquiatria a um oncologista, ou de oncologia a um psiquiatra. Logo não é tão irrelevante assim o acervo de conhecimentos que um MF deverá ter destes dois domínios.
Mas há mais: o âmbito da MF não se fica pelas psiquiatria e oncologia básicas. Não Senhor Ministro. Seguramente será sabedor que os MF tem como campos de ação não só a oncologia e as doenças mentais, mas também a neurologia, a angiologia, a nefrologia, a cardiologia, a endocrinologia, a urologia, a ortopedia, a reumatologia, a gastroenterologia, a ORL, a oftalmologia, a estomatologia, a dermatologia, a pneumologia, a saúde pública, a infeciologia, a pediatria, a geriatria, a ginecologia, a obstetrícia, a farmacologia clínica e mais alguns que V.Exª, ou outros leitores, possam apontar como lapso perdoável ao autor destas linhas, os ter olvidado.
Apercebemo-nos, pois, que a extensão de conhecimentos exigíveis à especialidade de MF é indiscutivelmente superior à de qualquer outra especialidade, apenas comparável à da medicina interna. Não esquecendo que a profundidade de conhecimento em cada uma delas é desmesuradamente menor que a exigível aos respetivos especialistas, pergunto: porque será que o peso inerente à vastidão de áreas de intervenção é desvalorizado em relação à profundida de conhecimentos exigidos para cada especialidade especifica? É verdade que aos MF se pedem quantitativos de conhecimentos muito diminutos em cada área de atuação. Mas, em contrapartida a vastidão destas áreas é única e o volume total de conhecimentos imprescindíveis a um bom desempenho é considerável. Ocorre evocar de Engels a lei da passagem da quantidade à qualidade, adaptada ao assunto que temos entre mãos: o somatório de múltiplas tarefas de baixa complexidade, resultará, a partir dum dado total de simplicidades, num conjunto complexo.
Mas quanto à baixa complexidade das patologias que tem por obrigação o MF manejar, permitirá V. Ex uma reflexão com conclusões algo discrepantes. Se é verdade que o seguimento de, por exemplo, dum caso de hipertensão arterial, grau I, sem fatores de risco associados, em doente aderente ao programa terapêutico, é simples (porque, como em muitas outras doenças, há casos de HTA simples e difíceis), já na diabetes, não me parece tal seja verdade. Salvo melhor opinião dos colegas endocrinologistas e internistas, não há casos simples na diabetes: há casos difíceis e muito difíceis. Ora a elevadíssima prevalência desta patologia não se compadece com pruridos “elitistas”, digamos assim, não consentindo outra opção que não entregar aos MF o seguimento desta doença difícil. Portanto, os MF não lidam apenas patologias simples, ou banalidades.
Dito dum modo mais corriqueiro: será que tocar considerável resma de burros, e logo para nosso azar sendo deles pouco dóceis, é mais fácil que montar um cavalo de alta escola?
Concluindo: do que ficou exposto, permanece a dúvida: onde terá V. Exª fundamentado a alegada desnecessidade do atual programa formativo da medicina familiar?
A política
A desconfiança põe-nos de sobreaviso contra toda a gente.
Teofrasto
Todavia, V. Exª não apenas é um ilustre doutorado, mas também Ministro. Considero a política como a mais difícil e árdua tarefa que cabe aos humanos desempenhar. E é sobejamente ingrata, porque os lapsos dum engenheiro ao pronunciar-se sobre medicina, são bem mais aceitáveis do que quando esse engenheiro, é também Ministro com a pasta que V. Exª tutela. É que não estamos falando de Ministros da Administração Interna, da Agricultura, ou da Cultura, mais apartados da saúde. A seguir ao Ministério da Saúde, nenhum outro terá menos folga para abordar estes assuntos de forma tão leviana.
É do público conhecimento que a fuga de médicos de família, que atinge proporções dramáticas, preocupa o próprio governo. Os juízos de V. Exª sobre a menor relevância da formação da especialidade de MGF só podem ter uma leitura: são médicos de segunda. Valha-lhe Nª Senhora de Fátima, Exª! Afana-se a Sra. Ministra da Saúde, qual “Passionara”, a apelar aos médicos, nomeadamente aos MG, que não abandonem o SNS e vem V. Exª desmerece-los, desprestigiá-los! Santo Deus! Referiu V. Exª que nos países do Sul a MGF tem menos notoriedade e – Valham-nos os Santos Cirilo e Método! – aí temos V. Exª a reforçar esse menosprezo! Como quer V. Exª que os médicos “tugas”, estabelecidos na Escandinávia, em terras Tudescas ou afins, aceitem o convite do nosso Primeiro Ministro para que regressem à pátria, se esta lhes nega o reconhecimento que os nórdicos lhes prodigalizam? Esclareça-nos Sr. Ministro: como? Abrindo mais faculdades de Medicina que formarão, daqui a dez anos médicos que fugirão da MGF como o Demo da cruz, ou do SNS como Maomé do vinho?
Acha V. Exª que se apanham moscas com vinagre? Infelizmente, Sr. Ministro, V. Exª não deu apenas um tiro no pé: V. Exª crivou de balas ambos pés da Sra. Ministra da Saúde e do Sr. Primeiro Ministro! Com ajudas destas por parte de parceiros de governo, quem precisa de opositores para torpedear os esforços de recrutamento de recém-especialistas em MGF? Que os Deuses do Olimpo se amerceiem de V. Exª, porque, quando vier à baila o tema da crescente escassez de MF, V. Exª será recordado e não propriamente de forma lisonjeira.
Notas finais
O único modo de evitar erros é adquirindo experiência, mas a única maneira de adquiri experiência é cometendo erros.
Contudo, é de toda a justiça conceder a V. Exª uma atenuante. Aproveito o ensejo para deixar, como quem não quer a coisa, uma alfinetada nalguns da minha classe. Afinal o Sr. Ministro não está só nesta empresa de menorização da MF. Apesar duma mudança positiva de atitude por parte dos nossos colegas dos cuidados de saúde secundários, de alguns anos a esta parte, a verdade é que ainda há por aí exemplos de desconsideração, que, para além de injustos fazem lembrar a historieta do lacrau que não resistiu a picar a rã que o transformava entre margens do ribeiro. Isto é, são contraproducentes, contribuem para o esboroar dos CSP e, como tal, põem em risco os alicerces de todo o SNS.
Numa segunda nota pego na sugestão de V. Exª, que, afinal, não assim tão inoportuna. Não será altura de pegar na deixa de V. Exª e repensar o tempo de formação em MGF: incrementá-lo em mais um ano? Ou, pelo menos em mais um semestrezinho?
Subscreve-se respeitosamente
Acácio Gouveia
Médico de Família
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