Os médicos também escrevem. E Leonel Barbosa entrou este ano na notável galeria de autores que operam a palavra, para cuidar de si e do outro.

Breviário de Medo e Malícia, publicado em setembro pela Guerra e Paz, é o primeiro livro de contos do jovem médico otorrino que viajou com a UCCLA- União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa- até à Cidade da Praia, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, integrando a comitiva do XI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa. É esse o contexto da conversa com a jornalista Teresa Dias Mendes, para a Health News. A ficção é uma terapia, e a dura realidade do SNS sugere inevitáveis leituras. O que recomenda o médico Leonel Barbosa ao ministro Manuel Pizarro ? ” Qualquer livro mais humanista do que tecnocrata seria importante. Qualquer livro de contos de Tchékhov”.

Leonel Barbosa, Prémio Revelação Literária da UCCLA:

O médico tem perdido um pouco o papel humanista, e a literatura ajuda-nos a entender o outro

Leonel Barbosa tem 37 anos, nasceu em Braga, estudou na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e exerce no Hospital Amadora-Sintra. Leonel Barbosa é otorrinolaringologista e deixou a medicina privada para poder escrever. As duas horas, após o serviço no hospital, de dedicação à escrita são uma disciplina sagrada na oficina do jovem médico, que este ano venceu o prémio literário Natália Correia, com o livro de poesia Egoscopia ou a Mecânica Geral de Si Mesmo, e o prémio revelação literária da UCCLA, com o já citado Breviário de Medo e Malícia. O médico que “sempre soube que queria ser escritor” ganha assim um novo fôlego para a estreia no romance, e, desafiado pelo hospital, desenha uma espécie de Clube de “Escritores Anónimos”, chamando todos os profissionais da área da saúde, dentro do Amadora- Sintra a partilharem leituras e textos ” a ideia é criar dentro de cada pessoa uma sensação de valor próprio e de integração numa comunidade. A maneira como as equipas trabalham , a comunicação entre cada um e a forma como se integram é fundamental. A  medicina privada é uma trituradora, e é bom que o SNS seja avesso a essa lógica em que o doente é visto como uma forma de receita, e este tipo de iniciativas, onde se cria uma rede interna de laços, de conhecimento do outro, e de estímulo, é na minha óptica o que deve ser o Serviço Nacional de Saúde, uma casa onde se valoriza  e compreende a pessoa, uma casa onde existe uma família gigantesca a servir a família comum do país”.

Sobre o estado actual do SNS, Leonel Barbosa diz ” nunca ter vivido a prosperidade que os mais velhos falam. É como a metáfora do sapo numa panela de água que vai aquecendo lentamente, ele nunca salta da água porque se vai adaptando à temperatura até que morre fervido. Se eu olhar para trás, desde 2011 até agora, foi um salto enorme de deterioração. As horas de trabalho, a burocracia, a escassez de recursos…” Elogiando a veia reivindicativa da nova geração de médicos, fala de um momento crucial para o Serviço Nacional de Saúde” Se não for agora, não vai ser nunca. Seremos todos transferidos para o privado e poucos ficarão num sistema nacional agonizante.”

A escrita sobreviverá sempre. Seja a poesia que escreve a qualquer hora do dia no telemóvel, o romance que há-de acontecer, ou os contos com que se estreou. Não por acaso, o primeiro conto – Aurélio e a Ausência – fala de alguém que começa por perder a audição. Antes que o ministro da saúde deixe de escutar os médicos, Leonel Barbosa prescreve ” qualquer livro de contos de Tchékhov” ao titular da saúde: ” pela dimensão de alguém que via a medicina como algo profundamente sagrado”. E a literatura ajuda-nos a cuidar do outro.

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