Maria do Carmo Cafede Médica especialista em MGF

E agora?

05/02/2020

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E agora?

02/05/2020 | Opinião

A humanidade parou, devido ao medo. Neste momento, já muitos especialistas tomaram a palavra, uns mais assertivos que outros, e tudo foi dito. Durante esta crise, surgiram heróis, tolos, oportunistas e gente anónima. Estes últimos, também invisíveis, conseguiram evitar o colapso do Serviço Nacional de Saúde (SNS), impedir que as ruas fossem campos de batalha, evitar situações de rotura social completa e manter a democracia, apesar do estado de emergência. Assustei-me, logo no início, com os riscos que ‘as minhas pessoas’ corriam e com a minha impossibilidade de os ajudar de modo concreto. Depois, temi pela economia do país e pela fragilidade da nossa Segurança Social, perante a ameaça de um confinamento indeterminado. Agora temo pelo futuro, em geral.
Do que vi, ouvi e li, não gostei dos totalitarismos políticos e das respetivas teorias da conspiração. Não gostei de saber que em pleno século XXI houve necessidade de abrir valas comuns para enterrar corpos de pessoas que não foram reclamadas. Não gostei que o isolamento social aumentasse o número de casos de violência doméstica e de crianças em risco. Não gostei que a maioria da população não tivesse conhecimento do dia-a-dia dos profissionais de saúde, nomeadamente que se estavam equipados a rigor, não podiam beber água, comer ou fazer xixi, caso tivessem necessidade. Não gostei de saber que faltou material, quando disseram que era mentira… Não gostei de saber que houve fome.
Alguém disse que tudo tem um lado ‘brilhante’, mesmo uma pandemia. A diminuição da poluição, as águas claras do mar, a ausência de ruído sísmico, as cidades aliviadas da pressão turística, os animais tranquilos em passeios livres, foram imagens que também trouxeram esperança. A criatividade, a solidariedade e o empreendedorismo emergiram de um ócio forçado permitindo melhorar a vida de outros. E agora temos um futuro pela frente.
Os determinantes da saúde foram alterados e todos os indicadores, individuais e comunitários, vão piorar, consumindo os recursos diminutos restantes. Vão surgir surtos de doenças infeciosas por diminuição das taxas de vacinação, os doentes crónicos vão ter mais internamentos por falta de vigilância, as doenças oncológicas escaparam ao crivo dos rastreios e diagnósticos precoces e vão aparecer em estadios não tratáveis. As doenças mentais vão aumentar e continuam a não existir serviços suficientes para as abordar. Os profissionais estão cansados ou doentes. Os incentivos desapareceram.
Não consigo imaginar o dia de amanhã… sem a pressão da COVID-19. Sem o uso de máscaras, de luvas, sem os cuidados de distanciamento, sem o medo. Provavelmente nunca mais vai desaparecer. Até à vacinação em massa de toda a humanidade, há tempo que tem de ser vivido. Quais as condições que nos serão impostas?
A atividade económica vai ser retomada, progressivamente ao sabor de um equilíbrio instável entre pareceres técnicos e agenda política. Mas haverá consumo? Superando o medo e a falta (ou ausência) de liquidez? Não sei. Sei, no entanto, que alguns postos de trabalho vão simplesmente desaparecer, por via direta ou pela lógica do «já agora». E serão nos grupos economicamente mais fracos. A tecnologia digital tornou-se fundamental no nosso quotidiano, ao nível da saúde, da educação, finanças, justiça e cultura. A sua generalização (democratização) é um imperativo da gestão governamental. Todas as descobertas têm um lado negro que não pode impedir o livre acesso a elas. Até uma simples moeda de um cêntimo tem duas faces. Parece-me a altura ideal para a chegada da «internet das coisas», a famosa «5G», mas… como a sua principal distribuidora é chinesa talvez seja recomendável um período de nojo. As incógnitas aumentam quando pensamos na próxima viagem. As companhias ‘low-cost’ vão desaparecer? Os aviões vão ser modificados para permitir algum distanciamento? Quanto custará uma viagem intercontinental? Temos que escolher o «cá dentro», o comboio, valorizar as razões dos vários prémios de turismo. Talvez desse jeito ter uma ferrovia que funcionasse, modernizada, com uma bitola europeia (pelo menos ibérica) e carruagens mais rápidas. E não podemos ignorar as alterações climáticas. Esta paragem possibilitou que a natureza se regenerasse, ainda a tempo, pergunto?
Quanto a mim, sou bafejada pela sorte. Todos os meus familiares e amigos estão bem. Em breve, estaremos a partilhar memórias destes dias. Tenho saudades de pouca coisa. Quero ver e ouvir o mar. Conduzir o meu carro. Comer um gelado no ‘santini’, framboesa e marabunta.
Vamos ter tempo. Dentro de casa, entre as pessoas, num dia, numa semana, aquele tempo que se gastava em coisas parvas. O modo como vamos usar esse ‘tempo’ ditará o sucesso individual e em conjunto. As perdas são tantas, que a humanidade vai retroceder umas décadas. O desenvolvimento não continuará ao mesmo ritmo. Não só pelo desaparecimento de mentes iluminadas, mas porque as crianças não vão ter as mesmas oportunidades. E isso não sabemos mesmo como vai ser.

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