“Desigualdades: Quando a pandemia não é igual para todos”

9 de Maio 2020

Os dados preliminares parecem indicar que a infeção por Covid-19 é marcadamente desigual, afetando de forma mais acentuada os concelhos e países que já têm um perfil socioeconómico mais precário

A doença e as desigualdades socioeconómicas têm uma relação simbiótica. A Covid-19 não é exceção e o Barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública está a tentar perceber em que medida. Os dados preliminares parecem indicar que a infeção por Covid-19 é marcadamente desigual, afetando de forma mais acentuada os concelhos e países que já têm um perfil socioeconómico mais precário e podendo mesmo exacerbar as vulnerabilidades socioeconómicas pré-existentes ao nível individual.

Segundo se sabe, a pandemia do Covid-19 teve início em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, na China, tornando-se rapidamente numa ameaça global com proporções que eram dificilmente imagináveis para a maioria de nós há apenas alguns meses. Mas, ao contrário ao que se podia pensar inicialmente, a Covid-19 não se apresenta como uma ameaça igual para todos.

Até agora ainda não foi possível perceber completamente em que medida a carga social e económica, originada pela própria infeção ou pelas consequências das medidas tomadas pelos países para proteger as suas populações, apresentam um padrão social. No entanto, embora a evidência sobre as desigualdades na pandemia seja ainda incipiente, as diferenças sociais eram expectáveis por aqueles que estudam as desigualdades socioeconómicas em saúde.

Sabe-se, há muito, que não só existem diferenças sistemáticas de saúde entre as pessoas que estão em posições opostas na hierarquia social, mas que a saúde piora a cada degrau que se desce nesta hierarquia.

Assim, no contexto da pandemia por Coronavírus, é igualmente expectável que esta também não esteja igualmente distribuída. E, de facto, as primeiras suspeitas desta padronização social começaram a surgir nos Estados Unidos da América, onde os dados demonstram a existência de diferenças raciais nos casos e na mortalidade por Covid-19.

De uma forma geral, as desigualdades podem surgir em fases distintas da doença: na infeção, no diagnóstico (e por vezes no tratamento) e no resultado (por exemplo a sobrevivência). Tomando o exemplo das diferenças no risco de infeção, as condições de vida adversas são, desde sempre, associadas à prevalência de doenças infetocontagiosas. Locais com maior densidade populacional, pela maior sobrelotação das habitações e dependência do uso de transportes públicos lotados, tornam mais difícil o distanciamento entre as pessoas, aumentando assim o risco de transmissão de vírus. Também as pessoas que vivem institucionalizadas em lares de idosos ou prisões, podem estar em risco acrescido de infeção, pelo confinamento em espaços mais reduzidos e partilhados com muitas outras pessoas.

Nesse sentido, de modo a aferir a contribuição de fatores socioeconómicos e de acesso aos serviços de saúde no número de casos (com informação recolhida até ao dia 30 de abril) a Escola Nacional de Saúde Pública desenvolveu dois modelos – um com cada variável introduzida individualmente (univariado) e outro ajustando por todas as variáveis em simultâneo (multivariado) – para o número de casos a nível nacional, por concelho (Figura 1).

Figura 1. Resultados da análise ao número de casos nos concelhos Portugueses (N=308, 30 abril 2020).

 

Os valores acima de “um” (1) correspondem a uma maior incidência acumulada de casos e os valores abaixo de um à situação oposta. Quando observamos a distribuição de casos confirmados por Covid-19 pelos 308 concelhos Portugueses (Figura 1), podemos perceber que, em ambos os modelos, é nos concelhos onde existe maior densidade populacional que existe também uma maior incidência acumulada de casos (com coeficiente superior a um, o valor de referência).

Nota: Exponencial dos coeficientes para a regressão de Poisson univariada (losangos laranjas) e multivariada (círculos azuis) e os intervalos de confiança para o número de casos, considerando a dimensão da população no concelho.

Também as condições socioeconómicas podem ter uma influência significativa no risco de infeção. A falta de compreensão em algumas camadas populacionais sobre a forma como se propaga a doença, pode dificultar a implementação ou adoção das medidas propostas pelos governos para combater a pandemia, como o cumprimento adequado da etiqueta de higiene, ou o uso apropriado de equipamentos de proteção. Mesmo a avaliação da necessidade de distanciamento social pode ser Comprometida por um menor nível de literacia, o que pode justificar algumas fugas ao confinamento obrigatório, decretado no
seguimento de confirmação de casos positivos ou suspeita de contactos com casos positivos.

O rendimento é condição necessária para o acesso a melhores condições de habitabilidade, com adequada rede de abastecimento de água e de esgotos que, por sua vez, são essenciais à higienização pessoal, necessária para diminuir a exposição à infeção. A precariedade no trabalho, remuneração desadequada face ao custo de vida e a dificuldade de acesso a apoios sociais podem impedir que as pessoas se resguardem mais nas suas habitações, para se protegerem do vírus. Trabalhos que não podem ser realizados à distância (teletrabalho), ou a necessidade de continuar a fazer pequenos trabalhos para garantir a subsistência a curto prazo, sujeitam as pessoas a uma maior exposição à infeção.
Este facto é confirmado pela análise do número de casos por concelho em Portugal (figura 1), onde se verifica que os concelhos com menor taxa de desemprego, maior média de rendimento e menor desigualdade de rendimento (medida pelo índice de Gini) são também os locais onde existem menor número acumulado de casos.
O acesso aos cuidados de saúde pode estar igualmente a influenciar o número de casos confirmados, simplesmente porque a maior acessibilidade aos serviços de saúde pode significar também um maior número de testes efetuados.
Sendo difícil de aferir o acesso aos cuidados de saúde ao nível de concelho, considerou-se o número de médicos por mil habitantes, como uma aproximação do acesso. Esta revelou-se significativa para a explicação do número de casos. Os concelhos com mais médicos por mil habitantes têm também maior número de casos face aos restantes (figura 1), pelo que se espera que um melhor acesso, no sentido de um potencialmente melhor serviço de saúde, seja determinante para um maior diagnóstico de casos positivos.
Comparação entre países
Mas este não é um fenómeno nacional. Numa análise centrada em apenas dois dos indicadores de desigualdades simples e universais – o desemprego e o índice de Gini – verifica-se esta tendência ao nível da análise dos vários países Europeus (figura 2), onde maior incidência acumulada de casos por cem mil habitantes é associada a países com maior taxa de desemprego e desigualdade de rendimento (com informação recolhida até ao dia 30 de abril de 2020).
As diferentes capacidades financeiras dos países, que influenciam os recursos disponibilizados para a realização de testes, e as diferentes abordagens nas políticas de testagem entre os países não permitem realizar comparações ao nível do acesso aos cuidados de saúde para aferir a existência de desigualdades.

Figura 2. Relação entre a incidência acumulada por 100 000 habitantes nos países Europeus analisados (N=15) e as variáveis socioeconómicas.

E se, por fim, para além do seu peso ser distribuído de forma desigual nos concelhos e nos países, também a própria Covid-19 pode ser promotora de desigualdades, num contexto comparativo temporal do antes, do durante e do depois. As consequências económicas da doença e do confinamento, como o desemprego ou redução das fontes de rendimento podem afetar desproporcionalmente os grupos mais vulneráveis.

Figura 3. Percentagem de pessoas que reportaram perdas totais ou parciais no rendimento desde o início da pandemia.

Dados do Opinião Social, o questionário do Barómetro Covid-19 que acompanha, semanalmente, a perceção dos portugueses em tempos de pandeia, apontam neste sentido e de uma forma bastante preocupante. Quando se perguntou aos inquiridos se o seu rendimento diminuiu, desde o início da pandemia, verificou-se que a diminuição do mesmo não foi igualmente partilhada pelas diferentes classes de rendimento assistindo-se a uma perda crescente nas categorias mais baixas de rendimento. Uma em cada quatro pessoas que ganham menos de 650 euros mensais (agregado familiar), perderam totalmente o seu rendimento, enquanto que nas categorias de rendimentos superiores a 2500 euros, apenas 6% de pessoas perderam o seu rendimento.
Do total dos respondentes, 52% referiram não ter perdas de rendimento, mas no grupo de pessoas cujo agregado familiar auferia entre 651 e 1000 euros esta percentagem desce para 44%, subindo para 75% entre aqueles que o agregado familiar recebe mais de 2500 euros.

Este estudo, alinhado com resultados de análises anteriores, indicia que o contexto onde vivemos é importante para explicar o nível de saúde individual, mesmo quando ajustado para a informação ao nível do indivíduo. Este é um problema complexo, onde múltiplas variáveis, como a acessibilidade aos serviços de saúde, a disponibilidade de infraestruturas, os locais de abastecimento de bens essenciais, as atitudes e comportamentos em saúde das pessoas que nos rodeiam, suporte social e o acesso à informação são determinantes da saúde.
Apesar das limitações metodológicas que este estudo em particular apresenta, a evidência preliminar sugere que a infeção por Covid-19 é marcadamente desigual, afetando de forma mais demarcada os concelhos e países que já têm um perfil socioeconómico mais precário e podendo mesmo exacerbar as vulnerabilidades socioeconómicas já existentes ao nível individual.
Para diminuir as consequências da emergência desta pandemia, com um risco real de perpetuação e agravamento das desigualdades, necessitamos de considerar todas as vertentes envolvidas (saúde, economia, entre outros) e apostar em intervenções conjuntas de Saúde Pública, a todos os níveis de decisão: local, regional, nacional e internacional.
Num contexto de um desafio de Saúde Pública Global é imprescindível que se reforce a capacidade dos países se organizarem na definição de políticas concertadas de saúde e económicas de combate à epidemia, de forma a que não se agravem as desigualdades entre países, com consequências para todos.

DCENSP/HN

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