António Marques Leal Médico de Família

Dia mundial do médico de família

05/19/2020

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Dia mundial do médico de família

19/05/2020 | Covid 19, Opinião

Quando o Miguel me telefonou a pedir uma colaboração escrita para a comemoração que se avizinha, O Dia Mundial Do Médico de Família, tive a noção que este contacto advinha da experiência vivenciada há uns anos atrás com a coleção O Lado Humano da Medicina.

Veio de imediato à memória uma de muitas e divertidas histórias passadas com doentes. Não sei explicar porquê, mas decidi não seguir esse caminho fácil e o acaso levou-me a elaborar uma reflexão sobre a vida profissional. Depois de o ler, não me restam dúvidas que o texto Os Malefícios do Tabaco, de Anton Tchecov, influenciou a escolha. Mas não só. Esta coisa do confinamento e da pandemia fizeram-me saudosista. Andei uns minutos a vasculhar nas quinquilharias do baú do passado e encontrei um pequeno livro esquecido de capas negras com letras a vermelho de sangue, recordando-me que um dia o vi no escaparate da pequena livraria do Campo de Dachau. O peso enorme do título, The Value of the Human Being, foi o bastante para o comprar com os restantes marcos que ainda tinha no bolso. Reli-o nestes dois últimos dias e foram as palavras reencontradas que serviram de mote para escrever algo sobre O Dia Mundial Do Médico de Família.

(Bolas!
Em breve, deixarei este papel e passarei a ser o utente do médico de família.
Foi tudo tão rápido!
Mas não é de mim que quero falar, mas de nós, médicos de família.)

Nunca será demais recordar a definição de médico de família, segundo o Royal College of General Practicioners: O clínico geral é um médico que presta cuidados médicos pessoais, primários (essenciais) e contínuos a indivíduos e famílias. Pode atender os doentes em suas casas, no consultório e, por vezes, no hospital. Aceita a responsabilidade de tomar uma decisão inicial sobre todos os problemas que o doente lhe possa apresentar, consultando (outros) especialistas quando achar apropriado. Normalmente, trabalha em grupo, com outros clínicos, em instalações construídas ou modificadas para esse fim, com a ajuda de colegas, de enfermeiros, de pessoal de secretaria adequado e de todo o equipamento que for necessário. Mesmo que exerça clínica sozinho, trabalha em rede com outros colegas e delega quando necessário. É um educador que investe na prevenção para promover a saúde do doente.

Que estudante de medicina não quererá abraçar este projeto?

Mas voltemos ao mundo real.
Nas últimas décadas, assistimos a um extraordinário avanço tecnológico no domínio dos exames complementares de diagnóstico e de alguns tratamentos. Esta rápida evolução levanta sérias questões nas quais um clínico dificilmente medita. Vai-lhe faltando tempo e disponibilidade para questionar a ética de fenómenos como o manuseio de algumas drogas que atuam na esfera psíquica, a realização de técnicas revolucionárias na reprodução humana, a possibilidade de adiamento da morte natural ou o uso de meios cada vez mais invasivos de poder descobrir o que se passa no lugar mais recôndito do doente. Para mais, temas como eutanásia, fertilização humana, engenharia genética, aborto e tantos outros ultimamente falados de forma exaustiva criam expectativas na sociedade em geral, arrebatando os sentimentos.

É importante ter em conta que qualquer clínico no exercício da sua atividade é influenciado por dois principais vetores.
Por um lado, da sociedade em geral, que pressiona o médico exigindo que descubra tudo, podendo para isso recorrer ao uso e abuso de exames que possam descansar a preocupação exacerbada de quem é bombardeado diariamente por notícias nos meios de comunicação social.

Por outro lado, dos governantes, que pressionam o médico nas questões económicas para as quais este não está preparado para se defender. É precisamente neste âmbito que os médicos são o último elo a sofrer pressão para a contensão dos custos das despesas de saúde. Esta ação condiciona a liberdade que deverá nortear a prática médica, nomeadamente na decisão de como diagnosticar e tratar os doentes.

Há muito que a medicina deixou de ser uma arte e passou a ser uma ciência que se pretende certa e baseada na evidência, mas também demasiado matemática, quantas vezes esvaziada de conteúdo humano e mostrando dificuldades em provar melhoria da qualidade de vida e facilidade na busca da felicidade.

A informação sobre os doentes arquivada em redes informáticas cada vez mais sofisticadas facilitam, e de que maneira, todas as tarefas do médico, mas é notório que aumenta as barreiras em relação aos doentes, obrigando o médico a olhar cada vez menos para o seu interlocutor. Por outro lado, toda esta informação arquivada, por mais protegida que esteja, pode eventualmente ser usada com finalidades incertas e potencialmente perigosas.

Volvidas mais de quatro dezenas de anos, a nossa evolução social não foi acompanhada de uma verdadeira e exigível evolução económica. Tentou-se igualizar as pessoas e desmoronar as barreiras sociais. Este interessante fenómeno, tão importante nas sociedades modernas, tem um exemplo paradoxal nos médicos. Em tempos idos, a medicina estava quase completamente entregue aos médicos, com o estado a regular muito pouco a profissão. O respeito por ela entronizava perigosamente os seus profissionais. Apesar de tudo, praticava-se uma medicina mais humana e é com alguma nostalgia que ouvimos as pessoas mais idosas falarem dos seus médicos, numa era de grandes dificuldades económicas, como aconteceu no tempo da guerra.

Hoje, o médico é visto pela sociedade em geral como mais um profissional a quem deve ser exigido o mesmo que se exige a outros técnicos.

Neste caso, no nosso caso, trata-se de um bem demasiado nobre, a saúde.

E nem o médico pode mais que a natureza, nem o seu conhecimento vai além de determinada fronteira, uma fronteira cada vez menos conhecida e que cada vez se exige seja ultrapassada.

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