Em Moçambique cada família tem de escolher quem dorme fora da tenda

24 de Julho 2020

Anifa Saide, 37 anos, queixa-se de dores no corpo, dorido após mais uma noite em que dormiu ao relento, no chão, sob a rede mosquiteira segura em duas estacas.

“Estamos a sofrer aqui”, diz, enquanto aponta para as costas, após três meses a dormir fora da tenda da família em Manono, Metuge, na zona de acomodação de deslocados da violência armada em Cabo Delgado, norte de Moçambique.

As tendas de lona distribuídas pela ajuda humanitária e outras improvisadas com tecido tradicional não chegam para tanta gente.

Metuge tem tendas espalhadas por cinco áreas acolhendo entre dez mil a doze mil pessoas, oriundas sobretudo do distrito de Quissanga, 50 quilómetros a norte.

Outras quinze mil pessoas foram acolhidas em casa de familiares e amigos.

Milhares em fuga depois de a vila sede de Quissanga ter sido atacada no final de março por um dos grupos que há dois anos e meio semeia o terror na província e cujas incursões impedem um regresso.

Há pelo menos duas famílias por tenda e em cada uma há que escolher quem dorme abrigado e quem fica ao relento – sendo que, por norma, as crianças e os mais velhos ficam lá dentro, enquanto homens e mulheres mais novas, como Anifa, ficam do lado de fora.

Nos agregados que ocupam algumas salas de aula no centro da zona de Manono, o dilema é o mesmo: não cabem todos e Luís Rubano, 65 anos, cedeu o lugar para os mais novos.

“Eu durmo aqui”, mostra, apontando para o alpendre onde se amontoam utensílios do dia a dia e roupa.

Um alpendre lotado, porque outros deslocados estão logo ao lado, como Alexandre Langa, 68 anos, com plásticos que tenta segurar sobre paus para travar o vento nas noites mais frescas do ano em Cabo Delgado.

“Durmo no chão e não tenho esteira. É assim todas as noites”, diz Faustino Raul, 37 anos, carpinteiro de Quissanga, que viu a insurgência armada levar-lhe a casa.

“Lá, dormia numa cama, dentro da minha casa”, recorda, como se de um luxo se tratasse, após três meses refugiado em Metuge e a dormir à porta de um dos blocos da escola.

Ao lado, a tenda de Mondlane Abudo está sobrelotada.

“Na tenda estamos a dormir em grupo. Tenho lá oito pessoas e eu, como sou homem, durmo cá fora e os meus filhos lá dentro, para os proteger do frio”, refere o chefe de família.

Um grupo de crianças junta-se em redor de uma tenda especial, a de Incada Antumane e Issa Pira, dois homens das treliças artesanais de capim com que fazem esteiras.

Ali continuam ali a arte que praticavam em Quissanga, mas sem os clientes de antigamente.

A maré de deslocados não tem parado, descreve Mustafá Ali Azito, membro da Ayuda en Acción, organização não-governamental espanhola que gere o dia a dia das zonas de acolhimento em Metuge.

As iniciativas multiplicam-se para tentar minimizar o problema da falta de abrigo – uma das principais carências, ao lado da escassez de alimentos.

“Tínhamos as lonas para poder atender a qualquer situação. Já abrigámos com essas mesmas lonas pessoas que sofreram com o ciclone Kenneth”, refere Fátima Vaz Mussá, assistente social e de abrigo na Organização Internacional das Migrações (OIM), ao descrever o campo cheio de tendas.

A OIM e a Ayuda en Acción têm distribuído centenas de mantas e esteiras aos deslocados.

“Nós fazemos tudo, de todas as formas, para ver a felicidade das pessoas”, diz Fátima, sabendo que para deslocados que dormem ao relento, uma manta pode ajudar a suportar o drama atual.

Mas a solução mais perene vai passar pela criação de uma nova aldeia onde cada família vai receber um lote de terra para construir as suas casas com materiais locais, como a madeira e o capim das matas em redor, além de ‘kits’ de material oferecidos pela OIM.

O Governo moçambicano e os parceiros humanitários, que incluem ONGs e agências das Nações Unidas, entre outras, “já encontraram um terreno e chamaram especialistas para verificar as condições mínimas de habitabilidade”.

“Falta um último encontro” para se iniciarem os trabalhos de limpeza do mato e preparação dos lotes em Ngalane, uma comunidade junto à estrada principal de ligação a Pemba, capital provincial – que está à vista, a poucos quilómetros, do outro lado da baía.

Em Ngalane já não haverá tendas e cada lote terá espaço para habitações tradicionais com dois metros de altura e 18 metros quadrados no interior para duas divisões, além de terras para produção agrícola de cada agregado familiar.

Haverá fornecimento de água e energia, com iluminação pública por forma a garantir mais segurança, descreve Mustafá Ali Azito.

Se a nova aldeia será permanente, isso depende do evoluir da segurança na província.

“Se esse problema acabasse, podíamos ir para casa, mas assim como está ainda não sei”, resume Anifa Saide.

Uma ideia ouvida da boca de quase todos os deslocados, porque “em princípio, as pessoas têm vontade de regressar à terra [de origem]. O que não as deixa voltar é o conflito”, logo, “caso a situação melhore” será de esperar um retorno, diz Mustafá Ali Azito.

Senão, “terão outras condições” na aldeia que dentro das próximas semanas começará a ganhar forma.

“Se as pessoas estiverem num sítio fixo”, com casas de material local, mas técnicas melhoradas, onde possam dormir e produzir agricultura de subsistência, “a partir de maio [do próximo ano] a situação será outra”, graças às primeiras colheitas.

“Se ainda estiverem cá até essa altura, já terão melhorado as casas sozinhos graças à floresta por perto, com paus e bambus, ao mesmo tempo que a situação de fome será minimizada”.

Ao mesmo tempo, as restrições globais impostas pela Covid-19 poderão desaparecer e “haverá melhorias” na chegada de ajuda humanitária a Cabo Delgado, pelo menos assim espera Mustafá.

LUSA/HN

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