Foi através de um bilhete de identidade de 1931 cosido à mão, um relógio parado no tempo, um medalhão de usar ao pescoço com fotografias nos dois lados e uma caderneta de racionamento de 1944 que a autora do livro conta a história escondida de doentes por trás destes objetos.
A jornalista caracteriza-os como “objetos banais” que poderiam pertencer a qualquer pessoa, mas foram encontrados dentro de uma caixa empoeirada. Pertenceram a pessoas com vidas conturbadas, nascidas entre o final do século XIX e início do século XX, que não só tiveram o azar de sofrer de doença mental, como a viveram numa altura “em que o confinamento e o afastamento surgia como a primeira resposta da medicina e da sociedade”.
Catarina Gomes revela que o fascínio por um mundo desconhecido e pela fragilidade da saúde mental são alguns dos motivos que mais a interessam pela investigação das doenças psiquiátricas. “Ao descobrir estas histórias tentei colocar-me nessa situação. A saúde mental é uma coisa tão frágil, [a doença] pode desencadear-se depois de um acidente, da morte de alguém, de um desemprego. É uma coisa tão absolutamente frágil que se pode atravessar na vida de cada um de nós.”
Ao considerar a doença como algo que pode atingir qualquer um de nós explica a escolha do título do seu mais recente livro “Coisas de loucos”, uma vez que “quando dizes ‘coisas de loucos’ é muitas vezes quando estás a desqualificar algo que alguém faz e que tu achas excêntrico. Estes são objetos de pessoas que por acaso foram diagnosticadas com doença psiquiátrica. Ao mesmo tempo é uma ironia porque estas coisas são de loucos como podiam ser minhas.”
Interessada pela saúde mental, mas sobretudo, pelo “escarafuchar” do passado do Hospital Miguel Bombarda, a jornalista decidiu iniciar uma investigação. Em 2011, saiu com o jornal Público o artigo “Eles fecham o último capítulo do Bombarda”, onde acompanhava a saída e transferência dos últimos 24 moradores do hospital, poucos dias antes do fecho definitivo dos portões. Mas sempre que passava pelos corredores crescia a vontade de escrever sobre o passado da saúde mental em Portugal. “Havia sobretudo um corredor que tinha álbuns fotográficos abertos, com umas caras muito sinistras, umas coisas a preto e branco muito tristes. E ao mesmo tempo estavam numas estantes com grades, aquilo parecia ser um passado encurralado”, descreve.
Decidiu pedir para consultar os livros de admissões, “calhamaços muito carcomidos” com os registos de entradas e saídas de todas as pessoas que passaram pelo Bombarda. O acesso foi concedido. “De facto o meu interesse inicial eram aqueles livros, mas depois apareceu lá uma caixa. Com um ar assim muito abandonado e muito sozinho, mas ao mesmo tempo muito misteriosa”, conta. Uma caixa que acabou por ser a peça central da investigação que começou por incluir uma lista de antigos pacientes cujas vidas gostaria de investigar mais a fundo. Como o tenente Aparício Rebelo dos Santos, que assassinou o próprio Miguel Bombarda dentro do edifício; José Júlio Costa, o assassino do Presidente Sidónio Pais; o bailarino Valentim de Barros; ou Jaime Fernandes, agricultor tornado artista.
Estes dois últimos nomes sobreviveram ao corte final, mas todos os outros foram substituídos por completos desconhecidos, pessoas comuns que Catarina resgatou do passado com a ajuda dos objetos que deixaram para trás. “Pensei em não incluir o Valentim nem o Jaime, porque achei que já estava demasiado visto. Pessoas famosas não me interessam nada, a não ser que tenha uma perspectiva nova, que foi o caso”, explica.
As primeiras quatro histórias foram divulgadas entre Outubro e Novembro de 2019 no Público, uma série especial de reportagens chamada “O que eles deixaram no manicómio”, vencedora do Prémio de Jornalismo em Saúde, atribuído pelo Clube de Jornalistas e pela Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica. Passaram oito anos desde a descoberta da caixa até à publicação das primeiras histórias. Uma Bolsa de Investigação Jornalística atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian deu o empurrão que faltava.
Relativamente às histórias que são contadas no livro, Catarina Gomes reconhece que a história com a qual mais se relacionou foi a da única mulher do livro. Leopoldina de Almeida, 42 anos em 1931. Na caixa do sótão encontravam-se muitos objetos desta paciente, entre eles um bilhete de identidade cosido à mão. Na “profissão” lia-se “doméstica”. Mas Leopoldina era modista. A comprovar existe o carimbo com as maiúsculas “LEOPOLDINA D’ALMEIDA MODISTA.
“Era uma mulher, uma mulher da minha idade, a quem tinha acontecido uma série de adversidades. Ela enviuvou com 19 anos e fui descobrir o marido dela no Cemitério da Ajuda. Chorei baba e ranho. Numa altura em que as mulheres eram completamente desqualificadas, esta era uma mulher que se estava a tentar agarrar à sua profissão”, recorda. Além da identificação e do carimbo, Leopoldina deixou uns óculos, um crucifixo, um molho de quatro chaves e “vários papéis”, como ficaram inventariados.
A jornalista admite ainda que nem todos os objetos resultaram numa história. Como um medalhão com dois lados: de um “uma mulher muito bonita, com o cabelo puxado em cima, com ar de século XIX e do outro lado era um homem muito elegante, com um bigodinho”, descreve. Mas Catarina nunca conseguiu descobrir informação sobre a medalha, que permanece uma incógnita. É uma das histórias que ficaram penduradas, para lamento da autora, mas que também vivem no livro, graças às imagens de Paulo Porfírio no anexo Objetos Soltos. “As fotografias são tão bonitas e tão sugestivas que é interessante imaginarmos as outras vidas que ficaram por contar. E que simbolizam os milhares que estão nos livros de admissões, os milhares de pessoas que passaram por este hospital e que tiveram estas vidas desgraçadas.”
Catarina ainda escreveu dois livros: Pai, tiveste medo?, em 2014, onde a Guerra Colonial é vista por filhos de ex-combatentes; e Furriel não é Nome de Pai, em 2018, sobre filhos que militares tiveram com mulheres africanas.
PR/HN/Vaishaly Camões
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