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Violência, violação e pedofilia na “pós-verdade” *
Há o “eu” e há a “realidade”, que são exactamente a mesma coisa, pois a “realidade” é o “outros” que nos governa interiormente e o “eu” é a realidade dos outros. O “eu” e o “outro” são um só, e é por isso que todas as “relações” são “auto-relações”.
Na relação com o “outro”, encontramos nossos fantasmas, os progenitores que nos encorparam. Uma “relação” é sempre um “incesto”, factível e “puro”, como o que reside entre os espaços da “psique”. O amor é tal-qualmente “auto-amor”, ele existe para compensar a falta do “outro” em nós. O “eu” refastelado do “outro” abandona-se, já não requer amor. O “eu” prejudicado pela “culpa”, repleto de “realidade”, de “outros” (“outros-eu”), jaz violentado, violado, profanado. Até que cresça e se sacralize, o “eu” será sempre criança, persistindo em violência, do “outro” e da parte do “outro”. Ora, o homem nunca é plenamente “ele mesmo”, é sempre “criança” crescendo, daí serem todas as relações práticas pedófilas. Sempre fornicamos uma “criança”, violamos um “infante”, tenha ela quinze ou oitenta anos (se bem que, sendo essa criança parte de nós, é então vero que sempre nos fornicamos a nós mesmos – na pedofilia, a criança “violentada” é sempre reflexo do vitimizador, aquela “criança” é ele mesmo infantilizado, buscando sua dimensão prematura(mente) -, à parte de nós que já vem de um “outro” que é parte do “eu” – não havendo, assim, muitas vezes, violência no que outros poderiam considerar como tal, visto parte dela fazer parte do que somos -; de modo semelhável, quando fornicamos/”violamos” é sempre um “outro” que fornica/viola, e o “violado” é sempre inviolável). É certo que mor idade implica mais peças de gestão da “realidade”, do “eu” nela e dela no “eu”, mas quem pode decidir onde começa a “maturidade”?, há “crianças” de setenta e “adultos” de dez anos, e a maturidade (esta implicaria que fossemos completamente “nós mesmos”, ou seja, um “outro” primário pronto a abandonar(-se a)o “outro” em nome de um “todo”, que, não obstante, é a violação absoluta da “egocidade”), como defini-la ou a operacionalizar?, mais vale medir o “sofrimento”, este aumenta quando o “eu” não se adapta ao “outro”, quando as ferramentas não permitem gerir eficazmente o embate da realidade.
Bem vendo, para defrontar a “realidade”, é preciso ter menos do “outro” subvertendo o “eu”, e mais “eu” amando o “outro” (amar, salvar, o “outro” é matá-lo, matando-nos a nós mesmos). O mais débil é o que tem mais do “outro”, sem que o reconheça como seu; este é o que jaz mais violado, e é também o que pode violar mais. Quem é violado acaba muitas vezes por violar. É a defesa, o imperativo de “ser”. O “violador” é sempre uma vítima, de si-mesmo, do “outro”, e ele é o “outro” de outra vítima. O violador viola-se sempre a si-mesmo, e o violado também viola o violador. E, como já dissemos, sendo ambos crianças, uma violação é sempre “pedófila”. O que reconhecemos como “adulto” é quase sempre alvo de uma imposição social. Muitas vezes, “adultamos” o que ainda é “criança”, outras vezes “indultamos” o que é mais maduro e faz o que outro poderia interpretar como “mau”.
Sim, há a questão da interpretação, da representação mental e social. Houve um tempo em que a pedofilia, a violência doméstica e a violência infantil eram vistas como “normais”. Numa sociedade onde todos levam, há menor trauma por se “levar”, porque o “fundo” é de baque normativizado. Há algo de “universal”, algo que é sempre “violência”, aqui ou na China, hoje ou há milénios, porque o corpo possui uma robustez comparável, mas também há algo de “cultural”. Numa sociedade onde a pedofilia é considerada “demoníaca”, a criança sofre mais com sua violentação, parte do seu trauma à cultura se deve, o “outro” violenta-a, no sentido em que um “outro” mais primário a violentou inicialmente com determinada referência cultural. A criança sai duplamente violada, mais do que duplamente. Numa cultura “normalmente” mais “violenta”, a violência condicionadora poderia ter preparado a criança para a violência vindoura. Acontece algo semelhante com a violência doméstica, sendo exponencialmente mais problematizada na sociedade actual comparativamente à sociedade de há cinquenta anos atrás. Parte do trauma da mulher advém da importância que o “outro” dá ao acto “violento”, o que o torna ainda mais violento. Esta “importância”, a reacção da “sociedade”, é um modo de violentar a mulher já depois de ter sido violentada.
Devemos, então, violentar a sociedade, preparando-a para a violência futura? Será que as “vítimas” entretanto produzidas justificariam a “salvação” no porvir? Ou devemos, então, evitar qualquer tipo de violência, preparando as nossas crianças para serem livres? Porque, extinguida a culpa, o peso do “outro”, diminui a defesa, bem como a violência. Pode ser que o violador/violentador também precise de ser libertado, tratado “psicanaliticamente”, mas, como sabemos, a coisa é difícil de ser corrigida, andam as pessoas anos no divã sem mudarem significativamente, limitando-se a “compensar”, a re-iludirem-se. E, depois, há esta coisa (do escrúpulo) de querermos “mudar”, em nome do quê?, em nome de quem?, do “outro” que já nos condicionou, do “outro” que não consegue normativizar a violência? (pode o “vitimizador”, por exemplo, aceitar ser “normativizado” pela sociedade cuja “norma” o transforma automaticamente em “vitimizador”, aliás, em “vítima”?), mas, bem vendo, “continuar tudo na mesma” pode não ser muito vantajoso (seja para ele, seja para a sociedade; apesar de tudo, a mudança pode vitimá-lo a ele, sendo que a “não mudança” também o vitima, como, menos provavelmente, a “sociedade”, que criaria novel norma na multiplicação potencial de muitos vitimizadores), estamos sempre mudando, pela força do “outro” no “eu” e do “eu” no “outro” (quiçá, violar seja a melhor forma de “salvar”, porque só pode arrumar-se o que for previamente desestabilizado). Também não sabemos se “libertar” a criança é assim tão “bom”. Não será fundamental criar “estruturas”, “valores”, evitando somente condicionar para além do engano mais “iniciático”?, ah!, mas o meu sentimento de culpa, também ele “trauma” pessoal, diz-me que isso não está certo, e estaria, porventura, certo deseducar, criar uma junta selvagem?
Pois é! Bem vemos como a realidade é complexa. Espero não traumatizar ninguém, não seria sensato mexer na lei estabelecida, ou seria? Não há modo algum de saber, pois a verdade não existe, somente a mudança persiste. E, veja-se, a “pós-verdade” não é mais do que “pós-modernidade” ressentida e re-espelhada.
* Texto publicado originalmente na obra «A Síntese (im)Perfeita. Sobre o tempo, a culpa e o Nada» (Edições Mahatma, 2017)
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