Os enfermeiros especialistas sentem-se injustiçados, desmotivados e cansados. A denúncia é do Professor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa do Porto, Pedro Melo, em entrevista à HealthNews. No âmbito do IV Fórum das Especialidades agendado para 17 de dezembro, o também enfermeiro especialista fala sobre os contributos dos profissionais no SNS, aponta críticas ao Ministério da Saúde e diz que mesmo antes da pandemia a “Saúde Pública em Portugal sempre foi muito pobre”.
Healthnews (HN) – Quais os principais objetivos do IV Fórum das Especialidades que irão realizar em dezembro?
Pedro Melo (PM) – Este evento era para ter decorrido em fevereiro, mas devido à pandemia teve de ser adiado e tivemos que alterar o formato para online.
Todos os anos organizamos um fórum das especialidades de enfermagem, nomeadamente as que decorrem na Universidade Católica Portuguesa, onde promovemos uma reflexão sobre o contributo de cada uma destas áreas de especialidade para vários domínios.
No Fórum deste ano vamos aproveitar os quarenta anos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para refletir o papel dos enfermeiros especialistas. Portanto, diria que a grande finalidade é mesmo podermos perceber que contributos é que estes enfermeiros foram dando ao longo destes anos ao SNS.
HN – E do seu ponto de vista qual foi o contributo?
PM – Na verdade, foram vários, porque temos várias áreas de especialidade em enfermagem. Ao longo dos últimos quarenta anos, a enfermagem foi acompanhando a evolução do SNS. Foi respondendo de uma forma especializada às diferentes necessidades das pessoas.
As próprias reformas que houve nos cuidados de saúde primários permitiram que hoje em dia os enfermeiros especialistas sejam alocados aos contextos certos para oferecer esses cuidados. Por exemplo, nas Unidades de Cuidados na Comunidade, temos enfermeiros especialistas em várias áreas: Saúde Materna e Obstétrica, Saúde Mental e Psiquiátrica, Saúde Comunitária e Saúde Pública, Saúde Infantil e Pediátrica, Reabilitação e Enfermagem Médico-Cirúrgica. Todos eles prestam cuidados focados nas pessoas ou nas comunidades. Isto tem sido muito interessante porque faz com que as pessoas também tenham acesso a cuidados que não tinham há alguns anos, quando não havia esta organização do sistema.
Também a nível hospitalar começa a valorizar-se mais a alocação dos enfermeiros especialistas aos serviços certos. A especialidade em Enfermagem Médico-Cirúrgica, na área da Pessoa em Situação Crítica que agora tem sido tão falada, nomeadamente na falta que fazem nos cuidados intensivos, é um sinal de que estão a perceber a necessidade que existe em alocar os enfermeiros especialistas certos aos locais certos. Por exemplo, na questão atual da pandemia não adianta termos ventiladores se depois não tivermos um enfermeiro especialista que saiba avaliar, diagnosticar e intervir na pessoa que está ligada ao ventilador, além de o saber manipular como é óbvio.
Há uns anos não era assim tão claro e eram alocados enfermeiros especialistas a serviços onde se calhar não seriam uma mais-valia.
HN – As falhas na gestão dos enfermeiros são o problema mais evidente nos cuidados diferenciados ou primários?
PM – É transversal a todos os cuidados, mas estou convicto de que nos cuidados de saúde primários começa a haver uma melhor gestão dos enfermeiros especialistas do que na área hospitalar.
Neste momento a própria lei já diz que nas Unidades de Saúde Familiar, por exemplo, tem que haver enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde familiar, ainda que seja uma especialidade recente a própria afirmação na lei de que tem que haver especialistas nesta área já é uma evolução. Os colegas estão agora a começar a atualizar as especialidades para trabalharem nestes contextos.
Nas Unidades de Saúde Pública, a lei também diz que lá devem exercer especialmente os enfermeiros especialistas em Enfermagem Comunitária, na área da Enfermagem de Saúde Comunitária e de Saúde Pública.
Nas Unidades de Cuidados na Comunidade temos todas as outras especialidades e estão muito bem estruturadas desde o início da organização dos cuidados de saúde primários.
Nos hospitais há, provavelmente, especialidades que são mais facilmente alocadas, como é o caso da Saúde Materna e Obstétrica nos blocos de parto e internamento de obstetrícia, ou os Enfermeiros de Saúde Infantil e Pediátrica nos serviços de pediatria.Nos serviços de medicina começam a valorizar cada vez mais os Enfermeiros especialistas em Enfermagem de Reabilitação (pelas situações mais prevalentes desses serviços que habitualmente condicionam os autocuidados), mas não vejo, por exemplo, ainda, a valorização merecida dos Enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Saúde Mental nos serviços onde seriam uma mais-valia, além de nos internamentos de Psiquiatria, claro.
É preciso repensar essa alocação porque temos enfermeiros especialistas de saúde infantil e pediátrica a trabalhar no bloco operatório. Temos enfermeiros especialistas em enfermagem Médico-Cirúrgica trabalhar nos serviços de pediatria e isso não é uma mais-valia para os utentes que precisam de cuidados especializados. Estes profissionais quando fazem a especialidade gostariam de a exercer, mas é uma pena porque com o tempo acabam até por ir perdendo algumas das competências que desenvolveram por não terem essa prática.
HN – A solução passa pela revisão dos curricula universitários?
PM – Talvez seja preciso repensar algumas questões. Não diria que o método do ensino está mal, pelo contrário, formamos dos melhores enfermeiros de todo o mundo e nesse aspeto acho que não se deve mudar. O que deve mudar, e que não há, é um acordo formal entre as instituições de ensino e as organizações da saúde, nomeadamente os Ministério da Saúde e das Finanças para que os enfermeiros possam ter apoio financeiro na própria formação especializada como têm outras profissões, como é o caso dos médicos.
Os enfermeiros pagam do seu bolso a formação especializada e acabam por investir muito e depois não veem o próprio Ministério a dar valor a essa formação que foi paga pelos próprios enfermeiros para oferecer melhores cuidados. Isso tem de mudar, deve haver um melhor apoio da formação especializada de enfermagem porque se sabe que é das melhores, mas não há este investimento do próprio Estado português na formação dos enfermeiros. O que também não se vê é a abertura de vagas nos serviços que precisam realmente destes enfermeiros especialistas. Há o outro problema daqueles que estão alocados nas áreas onde deveriam estar, mas não são reconhecidos como especialistas, facto que os impede de progredir na carreira.
Portanto, há uma série de desafios em que é preciso refletir. Não é mudar o sistema de ensino, mas sim a relação entre o ensino e a alocação dos recursos pelo próprio Ministério da Saúde.
HN – A especialização teria sido relevante no atual contexto de pandemia?
PM – Muito, em especial em duas áreas: a Enfermagem de Saúde Comunitária e Saúde Pública, alocadas às unidades de saúde pública que neste momento estão com muita carência. Aliás está a perceber-se que os inquéritos epidemiológicos não estão a ser feitos de uma forma tão célere quanto deveriam porque não há recursos. Deveria haver mais enfermeiros especialistas alocados… E quando falo em alocados não digo emprestados, mas é mesmo alocados do ponto de vista formal. Não é só durante a pandemia que houve este problema, sempre existiu falta de recursos e infelizmente a saúde pública em Portugal sempre foi muito pobre, o que significa que precisa realmente destes recursos de especialidade.
Relativamente aos cuidados intensivos precisamos de enfermeiros especialistas em Enfermagem Médico-Cirúrgica na área da Pessoa em Situação Crítica.
Há uma falta geral de todas as especialidades nos sítios certos. Era realmente preciso fazer um grande investimento na contratação dos enfermeiros especialistas porque os utentes precisam de cuidados especializados.
HN – A remuneração deve ser sensível à especialização?
PM – Sem dúvida. Esse é um dos problemas que desmotiva os enfermeiros hoje em dia. Temos enfermeiros especialistas a ganhar quase o mesmo que um enfermeiro generalista que acaba a Licenciatura. Os enfermeiros acabam por não ver reconhecidas as suas qualificações do ponto de vista financeiro nem ter outros retornos, nomeadamente na progressão da carreira. Não está a haver justiça para os enfermeiros naquilo que eles oferecem ao país.
HN – A Ordem dos Enfermeiros alertou para o número recorde de profissionais que solicitaram declaração para efeitos de emigração, sendo que em 2019 houve mais de quatro mil pedidos. Que mecanismos devem ser criados, por parte do Governo, para fixar estes profissionais?
PM – Há duas grandes questões. A primeira é a qualidade dos enfermeiros que formamos e deixa-nos felizes saber que os outros países da Europa reconhecem que os enfermeiros portugueses, sendo os melhores serão uma mais-valia para esses países, mas é uma pena que o nosso país não aproveite os enfermeiros nos quais nem sequer está a investir (os enfermeiros pagam a sua própria formação). Os enfermeiros formam-se e o país desperdiça-os, deixando-os ir quando precisa muito deles aqui dentro.
Eu diria que uma das estratégias que deveriam ser seguidas é a dos incentivos financeiros – esta profissão é das mais mal pagas dentro da saúde. Não chega apenas bater palmas aos enfermeiros porque no final do mês não chegam para pagar as contas. Atualmente, com o contexto de pandemia, temos colegas a fazer horas e horas sem descanso, não podendo estar com a sua família para não haver o risco de infeção. Acabam de estar privados de estar com os filhos, cônjuges, pais e de estar longe de todos e não veem nenhum reconhecimento a não ser palmas.
O país não valoriza estes profissionais. Não estou a falar dos cidadãos portugueses, mas sim do Estado. Por muito que se diga que houve mudança na carreira, na verdade houve mudança nos nomes, mas não houve mudança do ponto de vista prático naquilo que é a valorização real desses nomes. Os enfermeiros continuam a ganhar mal, continuam a fazer muitos turnos.
No ensino temos muita pena que isso aconteça… há muito o discurso que as escolas formam enfermeiros a mais, o que não é verdade porque se fossem muitos não haveria esta falta. Tenho a perfeita noção de se os que estão fora voltassem haveria, mesmo assim, falta de enfermeiros.
HN – Qual é o futuro desta profissão?
PM – O futuro não está em causa no sentido que as pessoas vão sempre precisar de enfermeiros. Há uma questão importante que às vezes as pessoas associam a enfermagem aos cuidados dos doentes nos internamentos e eu hoje já dei exemplos de várias áreas que nem têm a ver com internamento.
A enfermagem não cuida de doentes, cuida de infirmes. Esta é uma questão muito interessante porque se pensarmos no cuidar de infirmes, somos infirmes desde que nascemos até que morremos e não tem que ser só porque estamos doentes, pode ser porque somos pais e não sabemos cuidar dos filhos, pode ser porque casamos e queremos ter uma adaptação boa a esse casamento, pode ser porque temos uma ferida e temos que viver na mesma com essa ferida ou porque temos uma doença crónica e temos ser capacitados para viver com ela. Portanto, onde houver pessoas tem que haver sempre enfermeiros. O que acontece é que existem as pessoas, as necessidades, mas não estão alocados os enfermeiros a essas necessidades e as pessoas acabam por não ter respostas e vão vivendo o melhor que podem e depois temos indicadores muito maus de saúde pública (elevadas taxas de internamento, falta de acompanhamento das pessoas com diabetes, etc).
Eu diria que na saúde e não doença, isto parece quase um casamento [risos], precisamos mais dos enfermeiros porque as pessoas estarão doentes menos vezes do que quando estão saudáveis.
HN – Em que medida é que a o combate à Covid-19 realçou a importância destes profissionais?
PM – A pandemia veio destapar muitas necessidades que estavam encobertas, sobretudo nos cuidados de enfermagem. Não falo apenas do SNS, mas também das Estruturas Residenciais para Idosos onde se percebeu que têm uma grande falta de enfermeiros e por isso o próprio controlo da doença está a ser muito complicado. É preciso haver profissionais especializados que saibam o que estão a fazer.
Portanto, sim a pandemia tem demonstrado que os enfermeiros são mesmo preciso nos cuidados às pessoas e em todos os serviços, tanto no SNS, como nos privados e nas estruturas sociais.
HN – Significa que estes profissionais esperam do Governo mudanças significativas no futuro?
PM – Os enfermeiros em geral são acima de tudo resilientes; já passaram por tantos processos de desvalorização, mas ainda assim não desistem de cuidar das pessoas.
Tenho noção de que os enfermeiros estão muito cansados, mas não são entidades quase angelicais que cuidam das pessoas. São profissionais altamente qualificados que precisam de ser valorizados e acho que os enfermeiros continuam a acreditar, porque os cidadãos também mostram ao Governo que os enfermeiros fazem toda a diferença no SNS, no privado e na área social.
Estou convicto de que os enfermeiros nunca irão desistir de mostrar o seu valor e vão continuar a lutar para que os doentes tenham acesso aos melhores cuidados. Portanto, sim os enfermeiros ainda acreditam que o Governo vai acabar por valorizá-los.
Entrevista de Vaishaly Camões
Os profissionais de saúde e o SNS sempre foram mal tratados, nem um governo lhes reconheceu o seu valor, ouço políticos que se tivessem vergonha nem abriam aboca, sai um governo entra outro e nem um reconhece o valor dos profissionais de saúde, muitos agora choram é lágrimas de crocodilo