Mário André Macedo, André Beja, José Manuel Boavida, Simone Fernandes

Atividade não programada, uma história perdida

11/25/2020

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Atividade não programada, uma história perdida

25/11/2020 | Opinião

Introdução

A atual pandemia Covid-19, causada pelo vírus Sars-CoV-2, alterou de forma radical a nossa vida quotidiana. No setor da saúde, provocou um desafio sem precedentes. Ninguém estava preparado para um desafio desta magnitude, por todo o planeta, variados sistemas de saúde passaram por imensas dificuldades, alguns inclusive colapsaram e deixaram de dar resposta a emergências.

A saúde não fugiu às lógicas imediatistas a que estiveram sujeitos outros setores da sociedade. Foi possível constatar que em contexto pandémico, com a suspensão da atividade programada, principal fonte de receitas do setor privado, este não teve capacidade para manter a produção sem a intervenção direta ou indireta do estado. No entanto o setor público, por sua vez, foi capaz de uma profunda reestruturação em tempo recorde de forma a dar resposta a um número elevadíssimo de solicitações simultâneas, embora deixando a produção não-Covid com um atraso considerável e com impactos que é necessário conhecer.

O cidadão viu-se perante uma inesperada situação, onde a acessibilidade aos cuidados de saúde foi subitamente dificultada, em parte por questões objetivas relacionadas com a reorganização e sobrelotação hospitalar, em parte por questões subjetivas relacionadas com o seu receio em se dirigir aos serviços de saúde. Em Portugal, à semelhança dos restantes países do mundo, as interações presenciais entre utentes e profissionais de saúde foram na maioria das vezes substituídas por interações virtuais, com o objetivo de diminuir a probabilidade de contágio, por redução de contactos e de concentração de pessoas.

No entanto, não podemos cair novamente nesta falsa dicotomia de abordar a Covid-19 ou a atividade programada. Esta falsa escolha produzirá inevitavelmente respostas erradas. A situação belga demonstrou claramente, como o não controlar a pandemia levou à perda da capacidade de abordar as restantes necessidades de saúde. Desta forma, qualquer plano para recuperar a atividade programada, tem de ter em conta a necessidade de manter os números de novos infetados controlados. São duas dimensões interdependentes e inseparáveis.

Este texto procura realizar uma discussão sobre a atividade programada, com o objetivo principal de contribuir para a reflexão e enriquecimento da participação ativa e crítica no debate sobre saúde pública. 

Atividade Programada

Ao dia 13 de novembro, em plena curva ascensional da “2ªvaga”, Portugal tinha um total de 198.011 casos de Covid-19, dos quais quase 82 mil casos ativos, tendo-se registado 3181 óbitos. Estavam internadas 2794 pessoas, das quais 383 em cuidados intensivos. Quase 40% da capacidade de internamento em cuidados intensivos encontrava-se ocupada por doentes Covid, ultrapassando já a capacidade inicialmente alocada a estes doentes, com consequente nova suspensão da atividade programada. Situação que se torna ainda mais preocupante sabendo que o pico da segunda vaga ainda não foi atingido e o desfasamento de 5-7 dias entre os novos casos e os internamentos. 

As medidas recentemente anunciadas pelo governo, recheadas de equívocos e sinais contraditórios, aparentam não ser baseadas em nenhuma estratégia pré-definida. Pelo contrário, a navegação à vista, sem conhecida consultoria cientifica independente surge como opção na maioria dos casos. A falta de uma estratégia integrada de comunicação, com mensagens simples e amplamente difundida para chegar a todos os segmentos da população, deve ser também referida.

Sabemos que a pandemia agravou a conhecida condição pré-existente de desigualdades em saúde, pois a Covid-19 afeta de forma desproporcional os indivíduos de menor estatuto socioeconómico, os indivíduos racializados, desempregados e precarizados e restante população com vulnerabilidade acrescida, incluindo a maioria dos doentes crónicos. Não só estão mais sujeitos a padecer da doença, como sofrem os efeitos colaterais da pandemia, relacionados com a crise económica e social, isolamento social e restrição de movimentos e redução do acesso a cuidados de saúde, de forma mais intensa, contribuindo para adensar o círculo vicioso de pobreza-doença.

A situação agravou-se ainda mais com a queda sem precedentes da actividade programada. Segundo informação oficial, divulgada no final do mês de outubro, já com o esforço para recuperar os atos não efetuados, estão por realizar 600 mil consultas de especialidade e cerca de 100 mil cirurgias. Estes indicadores, para serem rigorosos, têm que ser claros: faltam realizar 600 mil consultas em relação a que medida? Qual a razão da escolha dessa medida de comparação e não outra?

O que realmente falta fazer?

Para compreender a dimensão da atividade programada não efetuada, procedeu-se à análise da sua evolução mensal dos dados disponibilizados pelo portal da transparência SNS. De modo a prevenir um potencial enviesamento da comparação com o período homólogo, procedeu-se à comparação com a média dos últimos 4 anos (2016-2019), complementada com uma comparação com o melhor ano da série, que refletirá a capacidade máxima de produção que seria possível atingir.

A diminuição da atividade cirúrgica foi calculada em 92.125 cirurgias, no dia 30 de setembro, em relação à média dos últimos 4 anos. Utilizando o melhor ano da séria, 2017, ficariam por realizar 104.037 cirurgias. A cirurgia de ambulatório teve uma quebra semelhante à restante cirurgia convencional, talvez de forma desnecessária, uma vez que implica menos recursos. Julgou-se que a cirurgia efetuada como urgente, poderia ter agido como válvula de escape do sistema, ajudando a mitigar o efeito do avolumar da lista para os atos programados. No entanto, isso não se verificou, tendo também as cirurgias urgentes sofrido uma quebra de 8,5%, o que significa uma redução de 6.298, num universo de 74 mil cirurgias de urgência.

Este facto reveste-se de preocupação acrescida, pois não tendo a população sofrido uma drástica melhoria do seu estado de saúde, o que aconteceu às pessoas que deveriam ter sido submetidas a intervenções de urgência?

A figura 1 ilustra a evolução da produção cirúrgica, evidenciando-se uma ligeira recuperação, especialmente tendo em conta que a presente segunda vaga trará um ainda maior impacto nesta dimensão.

 

Figura 1 – Evolução da Atividade Cirúrgica

A dinâmica é semelhante nas consultas hospitalares. A 30 de setembro ficaram por realizar 955.411 consultas em relação à média de produção dos últimos 4 anos. Comparando com o melhor ano (2019), ficaram por realizar 1.069.748 consultas. O impacto nas primeiras consultas foi maior e com menor recuperação que nas consultas subsequentes. Sabendo que a ACSS paga um acréscimo de 10% pelas primeiras consultas, estarão criados incentivos para privilegiar este ato. A diferença no ritmo da recuperação, pode ter três explicações, i) o facto de a redução da atividade programada ter igualmente atingido os cuidados de saúde primários reduzindo o fluxo de doentes referenciados, ii) as primeiras consultas normalmente são presenciais e mais demoradas iii) terão simplesmente sido canceladas?

Na figura 2, é possível perceber a evolução das consultas hospitalares:

Figura 2 – Evolução da Atividade Consultas Hospitalares

Uma organização como o SNS é extramente complexa, seria pois plausível supor que uma menor atividade cirúrgica e diminuição da produção de consultas, tivessem como consequência uma maior atividade de internamentos médicos, quer induzidos pelos profissionais para resolver as questões dos seus utentes, ou pela procura que o próprio cidadão faria na busca de soluções para a sua situação. No entanto, tal não aparenta ser o caso. Até 31 julho, houve inclusive uma redução do número de altas hospitalares por diagnósticos médicos. Ocorreram menos 33.231 (15,35%) altas médicas que a média dos últimos 4 anos, em relação ao melhor ano a diminuição foi de 35.599 episódios. Nos meses de janeiro e fevereiro, já era notória, embora numa dimensão bem inferior. Este facto, analisado de forma isolada, poderia ser explicado pelo aumento de atividades em ambulatório e melhor controlo das patologias na comunidade. Ou seja, até seria expectável e desejável que ocorresse uma ligeira diminuição. Mas não foi isso que ocorreu este ano, pelo contrário, estamos perante uma nova queda abrupta, que refletiu a dificuldade do cidadão a aceder a cuidados de saúde. O número total de dias de internamento teve o reflexo consequente da diminuição das altas, havendo uma diminuição que ascende a 490.298 dias de internamento. A figura 3 ilustra a queda neste indicador:

Figura 3 – Evolução da Atividade do indicador Altas Hospitalares

Por fim, foi analisado a evolução do recurso a meios complementares de diagnóstico (MCDT) em regime convencionado. Pela pouca internalização que este indicador tem, e não sendo necessária a presença física do utente para a sua prescrição, podia ter acontecido que apesar da redução das consultas, tivesse sido possível manter as vigilâncias laboratoriais e de imagem. Pelo contrário, a dificuldade de acesso aos cuidados de saúde primários e consultas hospitalares, com o recuo de muitos prestadores privados, criou uma situação gravíssima chegando este indicador a cair para quase 40% em maio, recuperando muito tenuemente até 31 agosto, altura em que foi atingido um défice de 4.332.193 exames totais (exames laboratoriais e de imagem, anatomia patológica, gastroenterologia, etc). Estamos perante uma situação com enormes implicações, pois a queda na vigilância pode ter deixado inúmeras situações sem diagnóstico, contribuído para diagnósticos tardios ou para o agravamento/descompensação de patologias crónicas.

Curiosamente, os encargos do SNS com MCTD aumentam a um ritmo mais elevado que os exames efetuados, havendo uma diminuição de 70.240 milhões de euros. Pode ter havido renegociações, maior recurso a actos mais caros ou aumento de preços por parte dos prestadores privados.

Figura 4 – Evolução MCDT e Encargos

Equidade

O impacto de qualquer doença numa população nunca foi homogéneo, a Covid-19 não é exceção. A pandemia exacerbou condições pré-existentes, expondo de forma mais agressiva as populações mais vulneráveis. 

A fatia da população, que já tinha dificuldade em navegar no sistema de saúde pré pandemia, viu a sua situação ser agravada pelos planos de contingência. Não é de estranhar, que apesar do medo, as urgências tenham voltado a ficar sobrelotadas, pois estes serviços funcionam como o escape final de segurança do SNS.

Indivíduos com vínculos precários, ou de baixo rendimento, tenderão a não valorizar sintomas da doença, não querendo arriscar ou o fim da relação laboral, ou a quebra de rendimento. Este incentivo à adoção de comportamento de risco é acentuado pela fadiga da pandemia, pois ao fim de 9 meses, é inegável que existe um crescente cansaço. Muitos que já passaram por uma primeira quarentena entenderão agora não fazer sentido repetir a experiência, sem explicações coerentes e a correta compreensão da situação.

O impacto da doença na mortalidade e morbilidade na população, não são suficientes para capturar o real impacto na saúde e na sua equidade. Registe-se que foram dados passos importantes para abordar a pandemia em algumas populações vulneráveis, com a não discriminação no acesso aos imigrantes indocumentados ou a abordagem à população sem-abrigo, em algumas regiões do país. 

Seria necessário aprofundar, nomeadamente com o reforço da comunicação, culturalmente e linguisticamente adaptada a diferentes grupos de migrantes, desburocratizar e anunciar a garantia de sigilo no acesso à saúde por parte de imigrantes, melhorar a estratégia de testes a potenciais focos de surtos envolvendo pessoas vulneráveis, como lares de idosos, centro de atendimento a toxicodependentes e instituições de apoio social.

A resposta pública tem de ser consistente sob pena de a lei dos cuidados inversos sobressair e adensar a iniquidade existente. A telessaúde pode desempenhar um papel importantíssimo na redução das desigualdades, mas tem que haver suporte por parte das estruturas locais – parcerias com as juntas de freguesia, centros de saúde locais ou as unidades móveis das UCC, com garantia do acesso a consultas especializadas em regiões geograficamente mais remotas e populações mais vulneráveis.

 

Conclusão

Considera-se que o atraso na atividade programada é um perigo para a saúde de todos nós. Coloca em risco a nossa saúde, a resposta do SNS a urgências, diminui o acesso aos cuidados de saúde, diminuindo desta forma a equidade em saúde. Recuperar o que não foi efetuado deveria ser um desígnio nacional. 

No entanto, não esquecemos a realidade atual em que vivemos. Não haverá recuperação da atividade programada sem a Covid estar controlada. É necessário melhor organização e planeamento de todo o eco-sistema de saúde assim como financiamento adequado para recuperar cirurgias, consultas e exames atrasados. Não podemos deixar que os hospitais se tornem a frente de combate, eles têm de ser a retaguarda.

As próximas semanas serão bastante exigentes. Todos estaremos à prova em várias frentes, da saúde, economia e social. São precisas respostas abrangentes, pois a saúde deve estar em todas as políticas.

A comunicação tem que ser melhorada. O próprio governo já o reconheceu. Aguardamos por melhorias nesta dimensão, as pessoas tendem a cumprir quando a mensagem é coerente, simples e percetível. Apostar no autoritarismo terá como consequência o crescimento de grupos negacionistas.

Temos de trabalhar para confinar o vírus, não pessoas!

 

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