Edna Tavares, Psicóloga Clínica, Coordenadora do serviço migrante GAT´AFRIK, técnica de rastreio e mediadora intercultural. Trabalho no GAT com mulheres migrantes desde 2013. edna.tavares@gatportugal.org www.gatafrik@gatportugal.org

A invisibilidade e a Covid-19 – acrescentam ameaças à saúde e aos direitos das mulheres migrantes em Portugal

12/01/2020

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A invisibilidade e a Covid-19 – acrescentam ameaças à saúde e aos direitos das mulheres migrantes em Portugal

01/12/2020 | Opinião, SIDA

Historicamente, existem fatores que condicionam e dificultam às mulheres e crianças migrantes, o acesso aos cuidados de saúde primários e que as colocam em maior risco e vulnerabilidade, antes e durante a pandemia. A migração tem impacto negativo direto nas condições de saúde das mulheres principalmente as que vivem com VIH e que são afetadas pelas outras infeções, através de doenças e outras comorbidades, tais como: tuberculose, hipertensão, diabetes, obesidade, depressão, ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático, violência, mutilações, incluindo mutilações genitais femininas, violência domestica e violência sexual. Consequentemente o agravamento de casos de violência de motivação racista e xenofóbica contra imigrantes e refugiados agudiza-se nessa conjuntura crítica, estes são culpabilizados por desigualdades estruturais, apesar de essas comunidades se encontrarem entre os grupos que padecem das desigualdades existentes.

O impacto do racismo e discriminação no acesso aos cuidados de saúde da população negra em Portugal, a sua determinação na criação de hierarquia social e injustiças em saúde têm sido recorrentemente estudados (Dias, 2016). A consequência do racismo recai também sobre dificuldades de estabelecer laços de ligação com os serviços públicos e cuidados de saúde primários. (PEREIRA, 2018).
As emergências de saúde intensificaram quase todas as formas de injustiça social na Europa e no Mundo. Preconceitos governamentais, falhas de liderança e respostas políticas inadequadas e inapropriadas deixam marcas que podem ser tão graves quanto a própria doença e a pandemia.

Pandemias não são neutras e, em geral, intensificam e enraízam as já existentes, com base no género. Sabemos que crises de saúde públicas globais anteriores, tais quais o Ébola, o Zika e o SARS, demonstraram reforçar os papéis sociais de género, como o de cuidado, e reduziram o acesso aos serviços de saúde, sexual e reprodutiva, seja devido à redução de acesso a matéria prima, remédios, e de consultas de especialidade, seja porque os recursos foram redirecionados em tempo de crise, constatando-se, assim, que as prioridades para as políticas públicas (normalmente desenhadas por homens) não incorporavam as necessidades específicas do género feminino.

São urgentes mudanças e inovação nas políticas de acesso à saúde e a sua desburocratização para a proteção e o bem-estar físico e psicológico da população mais vulnerável.

São necessárias implementar respostas adequadas a esta situação atípica, nomeadamente ao aumento do crime violência doméstica, que ainda hoje está francamente comprovada ser um crime contra mulheres. Mas também, a população migrante, que frequentemente dependem das organizações humanitárias e de base comunitária para ter acesso a serviços mínimos de apoio psicossocial e de saúde, de saúde sexual e reprodutiva, vacinas, rastreio de VIH, hepatites virais, TB e outras IST, além de informações sobre e acesso a métodos contracetivos, aborto, e cuidados ginecológicos, aconselhamento psicológico. A Covid-19 pode significar uma privação de diretos e serviços de proteção essenciais de que essas mulheres e crianças necessitam, e pode acentuar os riscos que elas já enfrentam para seu bem-estar e suas vidas.

Torna-se premente um paradigma de políticas públicas que tenha como base tanto o reconhecimento da dignidade de género, quanto as obrigações governamentais de respeitar, proteger, cumprir e fazer cumprir, os seus compromissos de direitos humanos.
Como a Covid-19 impactar a saúde e o bem-estar deste grupo já excecionalmente vulnerável? Como podem as políticas públicas dar respostas para minimizar os impactos imediatos e promover a saúde de mulheres e crianças migrantes a longo prazo?

Consideramos estas questões fundamentais relativamente aos números cada vez maiores de mulheres e crianças migrantes na Europa (e em Portugal) e como parte de um apelo para reparar as “…desigualdades de saúde de género em contextos de crises migratórias.”

Sugerimos, portanto, que organizações internacionais e Estados de trânsito e de residência (como Portugal) urgentemente aloquem recursos para responder às necessidades de saúde imediatas e às de longo prazo de e para mulheres e crianças migrantes e refugiadas.
É imprescindível reforçar que às mulheres migrantes em geral enfrentam maiores riscos relacionados com a violência, intimidação, tráfico de pessoas, abuso, violação e/ou assédio sexual. Bem como, a situações de discriminação e de estigmatização, além de sofrerem com barreiras linguísticas, exclusão social, pobreza, devido a diferenças socioculturais. Estes obstáculos maximizam às dificuldades de acesso a bens de primeira necessidade, aos serviços de saúde e medicamentosa, assim como, devido à falta de documentação.

As pessoas em situação irregular são invisíveis para o Estado, privadas (e silenciadas) dos seus direitos, encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade face à situação (económica, saúde, VIH, violência doméstica e à Covid-19), não são devidamente identificados e assistidos, as consequências da pandemia serão mais devastadoras, levando ao aprofundamento das desigualdades em saúde (e consequentemente ao crescimento de transtorno mental, solidão, suicídio, divórcio, trabalho sexual forçado, violência).

Em 2015, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável prometeram a introdução de políticas de desenvolvimento global baseadas num compromisso significativo com os direitos humanos. No entanto, mesmo antes do surgimento da Covid-19, já havia sérias dúvidas sobre o ritmo e a direção das transformações globais e do compromisso com o objetivo de “não deixar ninguém para trás”, a pessoa como centro de todas as decisões. Se os governos estão realmente comprometidos, então não podem ignorar os direitos dos mais vulneráveis, sobretudo em tempos de pandemia. É fundamental realçar que o acesso dos migrantes aos seus direitos é um trabalho continuo e imprescindível que não começa e nem termina com a pandemia.

Segundo a Pantuliano. S, diretora do Overseas Development Institute, uma das organizações de referência em temas de desenvolvimento, defender os direitos humanos como uma ferramenta para abordar as desigualdades é essencial. Nesse sentido, atitudes que negligenciem os direitos humanos das mulheres migrantes podem aprofundar ainda mais as desigualdades, e este é, portanto, um dos pontos mais críticos em relação a como governos e as organizações se devem posicionar durante a pandemia.

É crucial que não aceitar a “normalidade” da violência de género nem a invisibilidade das populações migrantes. É necessário contestá-la e combatê-las de forma permanente. Nesse sentido, é incorreto afirmar que a Covid-19 dificulta a suposta ‘normalidade’ de suas vidas, uma vez que ele aprofunda ainda mais o status permanente de desumanização a que este grupo está obrigado.

Isto requer um compromisso dos governos concentrar recursos apropriados para abordar as novas necessidades que a Covid-19 gera para essas mulheres e crianças para além das emergências imediatas, para que não só sejam mitigados os riscos que elas sofrem, mas que efetivamente seja defendida a sua dignidade como mulher e ser humano e nesse sentido é importante desenvolver politicas de “empowerment” de mulheres dentro de sua própria comunidade.

Para as políticas públicas atuais e futuras, mulheres e crianças migrantes devem ser escutadas e as suas perspetivas incorporadas nas respostas do governo a estas e a outras crises de desenvolvimento, como salientado na Conferência de Copenhaga de 1985, para alcançar a igualdade na participação social e na participação política (cívica) e nos lugares de tomada de decisões. Agora e depois da crise gerada pela Covid-19, necessitamos de um enfoque e inovação na saúde pública baseada melhor conhecimento e nos direitos humanos, que aborde diretamente as desigualdades de saúde globais de género, afirme a indivisibilidade dos direitos humanos e promova a integridade e a dignidade das pessoas vulneráveis e que assegure a responsabilização das autoridades governamentais que têm obrigação de fazer cumprir esses direitos. Pensar políticas e intervenções de saúde global para enfrentar a pandemia de Covid-19 em contextos de extrema vulnerabilidade como o dos migrantes exige ir além de políticas públicas, intervenções e medidas de saúde pública de “tamanho único” e de cima para baixo, tão frequentes no campo da saúde global, que desconsideram as condições de vida dos indivíduos para os quais essas medidas são destinadas, e envolver esses grupos no seu desenho e implementação para garantir a sua efetividade nesses contextos. Para tal, são imperativas: a análise cuidadosa das especificidades históricas e culturais desses locais e as experiências situadas dos indivíduos para produzir conhecimentos relevantes e intervenções adequadas para grupos (ORTEGA; BEHAGUE, 2020).

O trabalho desenvolvido pelo GAT – GAT´Afrik na comunidade é holístico, com uma comunicação horizontal, focalizado na pessoa e para a pessoa. As estratégias implementadas pelo serviço são de base comunitária, dando visibilidade e voz às necessidades das pessoas, criando respostas inovadoras baseado nas perspetivas próprias de cada pessoa que nos procura. Nunca é demais reforçar, que cada indivíduo é único, portanto merece uma resposta única. Sendo um trabalho de cariz comunitária, onde trabalham migrantes e pares para migrantes, é uma mais valia para uma resposta mais eficaz, pois elimina barreiras, aumenta a autoestima e permite toda a equipe aprender diariamente e criar laços para mitigar, monitorizar e intervir na redução de novas incidências de infeções e no aumento da literacia e na não discriminação.

Para atingir a meta dos 95´s até 2030 é necessário inovar, diagnosticar, tratar, empoderar toda a comunidade, principalmente o género feminino. Pois além, de ser o género mais atingido pelo flagelo desta infeção, também têm características únicas, que lhe permite o combate da mesma, dentro e fora de porta.

A União Europeia e também outras instituições têm obrigações legais e éticas com base no direito internacional de garantir e cumprir o melhor serviço de saúde possível para todos e todas. Nesse sentido, não é possível que governos escolham que direitos, ou de quem, serão garantidos, e quais – ou que pessoas – serão ignorados. No caso em particular de Portugal, onde foi amplamente divulgado pela mídia, que o Estado português regularizaria todos os migrantes durante a crise da Covid-19, através do Despacho 3863-B, infelizmente está longe da realidade. A princípio, não se trata de uma regularização, e sim uma medida excecional para enquanto durar o Estado de Emergência, com data específica para acabar. Este despacho, servirá apenas aos migrantes que já tinham marcação de atendimento no SEF ou que tenham enviado a sua Manifestação de Interesse. Criando assim, subgrupos de classes de migrantes, pois a medida excluiu os migrantes que se encontram em situação irregular e que não tem marcação no SEF. Ficando estes abandonados e entregues a sua própria sorte. Origina ainda outro tipo de problema, pois não prevê o que irá acontecer depois da data estipulada para o seu término, com grande parte da população migrante a perder de um dia para o outro o acesso aos direitos adquiridos. Essa medida é insatisfatória e não responde aos anseios e necessidades da população migrante, cobrindo de maneira ineficiente uma pequena parcela dela. Concordamos com a Comissão Lancet para as Migrações (https://www.migrationandhealth.org) que transparência e responsabilização nas políticas públicas destinadas a comunidades migrantes, bem como recursos apropriados e sensíveis a necessidades relacionadas com o género são essenciais em qualquer crise sanitária, incluindo a que vivemos atualmente.

Como resposta à crise atual, reivindicamos a suspensão de todas as tentativas, legais ou não, de limitar o acesso de migrantes e refugiados a serviços de saúde, e o fim das repatriações e deportações forçadas; interpelamos ainda para que os governos trabalhem de forma coordenada e transfronteiriça para desenvolver políticas para combater a xenofobia e o racismo que enfraquecem o direito dos migrantes à saúde e para garantir que os serviços de saúde apropriados, particularmente aqueles específicos para a saúde sexual e reprodutiva, cheguem às mulheres e crianças migrantes e refugiadas a curto, médio, e longo prazo.

co-autores:
Diógenes Parzianello: diogenes.parzianello@gatportugal.org 
Fátima Gomes: fatima.gomes@gatportugal.org

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