Luís Mendão é um dos fundadores e, desde 2009, presidente do Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT), que surge oficialmente em 2001. Hoje, mais do que um grupo de pressão política para a defesa dos interesses dos doentes com VIH, o GAT oferece vários serviços e programas de apoio a necessidades específicas de quem vive com SIDA. Em entrevista ao HealthNews, Luís Mendão relembra a rutura com a Abraço, o surgimento dos “quatro 90”, a aversão e renuncia ao paternalismo médico em Portugal e a necessidade que deu origem à organização: a de serem os doentes a tomar conta do seu destino. Tudo até à grande batalha que hoje trava, o acesso à PreP.
HN – Fale-nos um pouco sobre o GAT. Como é que surge a organização e desde quando é que está envolvido?
Luís Mendão – Eu fui um dos fundadores do GAT. Existem historicamente várias organizações que, desde a explosão da epidemia em Portugal, intervêm em Portugal. A maioria dos movimentos que surgiram nessa altura era sobretudo de apoio às pessoas que viviam com VIH, porque estas pessoas eram geralmente diagnosticadas com SIDA e até 1996, quando surge o primeiro tratamento eficaz, as pessoas morriam muito rapidamente. Era uma daquelas doenças que tinha prognóstico certo, as pessoas com SIDA tinham entre seis meses a três anos de vida.
Muitas destas associações tinham um carater de apoio e solidariedade com oferta de cuidados compassivos, mas o papel das pessoas com VIH nessas organizações era extremamente reduzido, com as exceções do fundador da Alternativa Positivo e do Amílcar Soares, da Associação Positivo, as únicas organizações dirigidas por pessoas assumidamente seropositivas.
Fui membro da Abraço desde 1994 e fui diagnosticado em 1996. Lá, sentíamos a necessidade de que a investigação, o tratamento e a literacia em saúde tivessem a participação ativa e ativista das pessoas que vivem com VIH. É por isso que se chama Grupo de Ativistas com Tratamentos, porque surgiu de um conjunto de pessoas de diferentes associações que queriam, para Portugal, o acesso atempado a melhores medicamentos, à boa inovação terapêutica e a um standard de cuidados de saúde e respeito pelas guidelines, que estavam constantemente a mudar. Eram estes os pilares iniciais de atividade.
A ideia era que, em colaboração com alguns órgãos internacionais, trouxesse-mos a melhor informação possível e interagir com os reguladores e com as associações médicas para que as pessoas tomassem o seu destino nas mãos. A maioria dos médicos sabia pouquíssimo sobre VIH e os tratamentos, era uma doença nova.
Em 2004/2005 houve uma separação na Abraço entre dois grupos, que levou a que considerássemos que havia uma parte de políticas de saúde que ficavam por responder, uma vez que abraço se orientou mais para questões de apoio domiciliário e social. Foi assim que saímos da Abraço.
HN – O GAT ficou entretanto conhecido por recorrer a ideias “menos convencionais” para levar as suas intenções a bom porto. O que é que vos fez sentir esta necessidade de um ativismo mais proativo?
LM – Repare que a tradição médica em Portugal é profundamente paternalista e a pessoa com doença serve para ouvir e obedecer ao que os médicos dizem. Também a sociedade civil portuguesa é geralmente muito subserviente ao poder político que governa, na minha opinião. E nós rejeitávamos tudo isso, a ideia da subserviência ao poder, o paternalismo médico e o alinhamento com forças político-partidárias.
Tínhamos uma massa critica no GAT que era, atrevo-me a dizer, superior ao que era comum no início do milénio. Nesse sentido, falávamos com mais segurança de assuntos difíceis e que não eram dominados nem abordados pela sociedade civil. Nesse sentido, construímos a questão da participação que tinha até um motivo famoso: “Nada sobre nós sem nós”.
Depois, o GAT também tem a sua origem no americano TAG (Treatment Action Group), mas mesmo assim eramos o lado mais baseado no conhecimento e menos extremista. Nós sempre procurámos falar com o máximo de informação e conhecimento possível. Isso, penso, acabou por fazer com que, quer os médicos mais importantes, investigadores e políticos na área das políticas de saúde, passassem a ter respeito pelo GAT.
HN – O GAT foi também dos primeiros impulsionadores e defensores dos “três 90”. Pergunto-lhe como é que surgem estes parâmetros e se, na altura, as metas não lhe pareceram demasiado ambiciosas, tendo em conta o panorama?LM – Os “três 90” e o aparecimento da iniciativa em Paris das cidades na via rápida para a eliminação do VIH começam a germinar há 10 anos atrás e tomam forma pouco mais tarde. Têm que ver com a convicção de que, apesar de não haver uma vacina, tínhamos medicamentos perfeitamente eficazes e seguros relativamente bem tolerados. Em 2007, surgiu conhecimento de uma coisa que em Portugal só foi reconhecida publicamente há cerca de três anos, pela Dra. Isabel Aldir, que um doente em tratamento com carga viral indetetável não transmite o VIH. O que tínhamos que fazer era prevenir as infeções, diagnosticar o mais cedo possível, iniciar o tratamento o mais cedo possível e, nesse sentido, a possibilidade de eliminar a epidemia enquanto problema sério de saúde pública era possível.
Os primeiros slogans que apareceram eram do género “Zero casos de infeção, Zero casos de SIDA, Zero casos de discriminação”, mas estes objetivos absolutamente maximalistas muitas vezes levam a que se desista deles rapidamente. Foi por isso que nós, em conjunto com muita outra gente, queríamos encontrar indicadores que pudessem ser medidos e que permitissem perceber se estávamos a caminhar no sentido da eliminação da doença. Daí vêm os famosos “90, 90, 90”, “95, 95, 95”. Chegando a estes indicadores teríamos a pandemia sob controlo e o n´mero de novas infeções por VIH e de casos de SIDA tenderia a descer.
HN – Hoje existe um quarto 90. Porquê a introdução deste quarto 90?
LM – O quarto 90, na verdade, aparece quase simultaneamente. Lembro-me que a proposta foi feita à OMS e à ONU SIDA logo em 2015/2016, porque nos parecia uma visão demasiado biomédica. Isto é, só interessa se transmite ou não transmite, mas sabíamos que isso era uma visão redutora porque, para o direito de viver uma vida plena, a qualidade de vida e de saúde não se reduzem exclusivamente a uma carga viral indetetável.
Uma das razões pela qual o “quarto 90” não aparece imediatamente é a dificuldade objetiva de medir a qualidade de vida. Medimos pela avaliação médica, mas com que parâmetros? Medimos também pela avaliação subjetiva do próprio. Medimos pela saúde mental e psicológica de cada um… Portanto, é difícil, e tem havido um grupo, do qual fazemos parte, que se chama HIV outcomes que tenta encontrar com a academia, com a industria, a OMS e outros especialistas e a comunidade, medidas objetivas que permitam avaliar os resultados em saúde holística para que tenhamos essa medida da qualidade de vida.
Apesar disto, ainda não existe um compromisso internacional para medir o quarto noventa, e se calhar uma das razões é porque, se calhar, não se trata de ter 90% das pessoas com carga viral indetetável com boa qualidade de vida, mas sim um contínuo desde o diagnóstico à chegada à carga viral negativa com boa qualidade de vida. Ela tem que acompanhar o percurso das pessoas com VIH, e não só no final.
HN – Entretanto, o GAT teve também um papel importante na implementação da PreP. Custou muito insistir para trazer e implementar a PreP em Portugal?
LM – A PreP é um enorme desafio. Havia um medicamento que prevenia a infeção por VIH em situações de exposição numa altura muito anterior ao que a maioria das pessoas pensa – os primeiros estudos são de 1995, já com o tenolfovir e mostraram enorme eficácia, mas a investigação foi abandonada porque havia a convicção de que isso levaria ao fim da moral e dos bons costumes. Uma discussão muito semelhante à da pílula feminina.
Só por pressão da comunidade é que a Gilead, que detinha a patente da molécula, avançou para ensaios clínicos. Em 2010, o GAT começou a trabalhar para criar conhecimento e provas de que a PreP funcionava. Em 2012, a FDA aprovou o tenofovir disoproxil fumarato para PreP, mas na Europa tivemos uma guerra sem fim, quer com a Agência Europeia do Medicamento (EMA), quer com o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) no sentido de dizer que esta era uma ferramenta essencial. Só em 2014 é que conseguimos que a EMA aprovasse a PreP.
Entretanto, a Gilead começou a estudar uma nova formulação do tenofovir porque este ia sair de patente. Portanto, a farmacêutica deixou de ter interesse em promover novas indicações para uma molécula que, na altura, custava cerca de 500 euros por mês a um doente, e que atualmente custará entre 15 a 20 euros.
Em 2014, em Portugal, deparámo-nos com uma panóplia de oposições, sobretudo pelo preço, que nunca seria custo-eficaz. Quando finalmente conseguimos impor na agenda do Ministério da Saúde um piloto para a PreP, ele foi feito pelo INFARMED de tal modo que era praticamente impossível aceder aos medicamentos. Tinham projetado que seriam 100 a 200 pessoas a pedir acesso à PreP, que ficou na prescrição exclusiva nos médicos hospitalares que tratavam o VIH. Criámos um sistema em que as pessoas saudáveis, em risco de ter uma infeção, tivessem de ir a uma consulta hospitalar. O seguimento da PreP obriga a quatro ou cinco consultas por ano e à realização de análises pelo menos quatro vezes por ano e a ir ao hospital todos os meses levantar os medicamentos. É aí que, desde 2017, temos feito força para o medicamento, mesmo que continue em dispensa exclusivamente hospitalar, seja de prescrição por outros médicos nas estruturas comunitárias, nos cuidados primários de saúde ou mesmo no privado.
Hoje, contrariamente às esperanças alimentadas pelo Ministério da Saúde e pela DGS, não vai haver nenhum anúncio de reforma do acesso à PreP.
Segundo o último relatório, a DGS diz que haverá entre 1.000 a 1.500 pessoas em PreP – um décimo do necessário para ter impacto de saúde pública, mas que não conseguem saber ao certo, mesmo sendo o medicamento apenas dispensado em farmácias hospitalares e sabendo que sempre que há uma receita só de tenofovir só poderá ser para PreP. É ridículo que não seja possível perceber quantas pessoas estão a levantar receitas de tenofovir para PreP.
Por último, não faz sentido nenhum que um medicamento mais seguro que a maioria das pílulas contracetivas e tão eficaz quanto as mesmas, tenha de ser dispensado por médicos extremamente especializados. É como obrigar uma mulher a ir quatro vezes por ano ao hospital para ter a prescrição, ter de la ir todos os meses levantar a pílula e, quatro vezes por ano, ser submetida a testes para avaliar uma série de parâmetros como DST. Não é exequível.
Entrevista de João Marques
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