“Quis sair quando me vi no fundo do poço”. A história de vida e sobrevivência de dois doentes com VIH

12/01/2020
Há 30 anos o diagnóstico de VIH SIDA era uma sentença de morte. Hoje, com duas gerações distintas de infetados, a história é diferente. Ainda assim, os primeiros doentes diagnosticados foram os que mais sofreram. Ricardo e Américo, nomes reais, são dois dos rostos que restam para contar a história. Contemporâneos, mas diagnosticados em alturas bem diferentes, os companheiros de casa relembram com detalhe o dia do diagnóstico e as reações. Vítimas do infortúnio e do destino, esta é a história de dois amigos unidos pela doença e pelo sistema, onde até hoje permanecem.

Com espírito natalício, as várias cores que enfeitam a árvore de Natal do apartamento, na Quinta dos Barros, onde habitam Américo Martins e o Ricardo Meireles, serviram como reflexo de duas histórias impactantes. O passado cinzento destes dois grandes amigos é hoje contado com esperança e espírito de irmandade. Com uma doença crónica em comum, estes dois amigos viajam no tempo para falar sobre a forma como a VIH mudou as suas vidas.

Nascido no Porto, com apenas cinco anos de idade Américo veio para Lisboa “com as mãos todas queimadas” e foi entregue na Santa Casa da Misericórdia. Aos 49 anos volta a recordar a infância. “Tive um episódio muito triste na Misericórdia quando tinha cinco anos… fui violado por uma pessoa que não sei quem é. Na altura a Misericórdia não agiu”, recorda com as mãos entrelaçadas.

Mais tarde é internado na Casa Pia e torna-se um dos protagonistas do maior escândalo de pedofilia a nível nacional, onde os meios de comunicação transmitiram imagens de Américo “quando era pequenino” de álbuns fotográficos. “Fiquei um bocado desiludido… muita coisa se passou e foi a enfermeira Ana Campos Reis que deu a volta ao critério da situação”.

Sentado no sofá, Américo revela que foi na Casa Pia que contraiu a infeção por VIH. Lá “praticava-se a prostituição, faziam-se filmes pornográficos onde participei e saí da Casa Pia já com a doença”.

Uma infância marcada por episódios traumáticos

O seu braço direito e amigo de doença, Ricardo Meireles partilha, por sua vez, como contraiu o vírus. Nascido em Viseu, criado pelos avós até anos nove anos, admite que quando se mudou para Lisboa tornou-se mais rebelde. Com 42 anos recorda que: “Vim para Lisboa com a minha mãe e tive que repetir a quarta classe cá. O ambiente de uma aldeia com dez alunos para uma escola totalmente diferente chocou-me muito. Depois também o meu pai tinha o vício do jogo… vi-o bater e violar a minha mãe”.

A infância dura de Ricardo levou-o a tomar caminhos que quase o conduziram à morte. “Fui posto fora de casa quando ia fazer 15 anos. Comecei a consumir drogas com 14.” Foi por causa do consumo de drogas injetáveis e da partilha de seringas que Ricardo Meireles contraiu a doença de VIH, mas foi em 1998 que tudo mudou. “Estava em Espanha quando comecei a sangrar das gengivas, mas como não sabiam o que era internaram-me e fizeram-me uma data de testes. Passado dois ou três dias o médico disse-me, em espanhol, que tinha hepatite B e C, mas não percebi que também tinha VIH. Fiquei com a ideia do que era, mas só quando me vieram buscar à instituição é que perguntei, e o colega é que me confirmou que tinha VIH”. Numa altura em que a “só a palavra em si já era considerada uma sentença de morte, ao ouvi-la associada a mim senti que já não havia nada a fazer”.

Ao contrário de Ricardo, que confessou sempre ter tido noção que os seus comportamentos seriam considerados de risco, na altura de Américo a informação que existia sobre a doença era praticamente nula.

Américo Martins relembra que reagiu muito mal ao diagnóstico. “Lembro-me muito bem disto. Fui a Santa Maria fazer um teste. A médica diz-me para eu me sentar e diz ‘você agora viva ao máximo. Tem SIDA’ e que não ia durar muitos anos. Fiquei transtornado. Os seguranças tiveram de ser chamados. Fiquei mesmo muito mal.”

O estigma e a discriminação dos doentes com SIDA

Muitos episódios dolorosos fizeram parte da vida destes dois doentes seropositivos. Américo relembra que viu colegas a morrer. “Tive colegas meus da ‘Casa Amarela’ a tomarem AZT. Foi o primeiro medicamento a entrar no mercado e comecei a vê-los a patinar. Chorava muito. Tinha 18 anos e para mim foi uma tortura.”

Quando a doença chega a Portugal os doentes com VIH sofreram o impacto do estigma e da discriminação. Américo aponta que nesta altura as pessoas seropositivas eram marginalizadas de tal forma que “ninguém as queria”. “Toda a gente tinha medo de estar ao pé de um seropositivo, mesmo um aperto de mão… era medonho. Mas a misericórdia tinha uma proposta que consistia em colocar todos os seropositivos num canto, lá no Norte, e aí ficavam”, até aparecer a ‘Casa Amarela’, em Lisboa.

Um projeto iniciado por Maria de Belém, a Residência Santa Rita de Cássia (ou Casa Amarela, como é conhecida pelos utentes), destina-se à ajuda a doentes seropositivos em regime de internato e foi a primeira resposta inclusiva do seu género. À frente da iniciativa estava “a enfermeira” Ana Campos Reis.

Com a doença em comum, era aqui que muitos dos doentes adquiriam mais informações sobre a doença e a medicação. Aqui a vida era diferente, “cada um tinha as suas atividades. Fazíamos a cama, limpávamos o quarto e cheguei a fazer comida para sessenta pessoas (…), mas dava-nos uma qualidade de vida que não conseguíamos ter no exterior”.

O sabor a amargo do amor

Com um passado ligado à prostituição que insistia em manter por perto, Américo “ia entrando e saindo” da instituição onde tinha comida, uma cama e roupa lavada. “Arranjava um tipo não sei de onde e ia com ele dois ou três dias. Houve situações ‘simpáticas’ em que alguns indivíduos iam pedir a minha mão à enfermeira Ana Campos Reis, e ela respondia ‘tudo bem, leve-me o Américo, mas por-favor não mo tragam'”. E ia, “mas passado uma semana voltava com ‘lágrimas de crocodilo’ e a pedir desculpa”.

Ricardo, também ligado à Santa Casa da Misericórdia, procurou a ajuda junto do Centro Maria Madalena, que o colocou em apartamentos terapêuticos onde, sem adiantar grandes detalhes, diz que conheceu uma rapariga que, algum tempo depois, morreu de cancro. “Fiquei muito abalado. Sai do centro e estive 15 dias fora, que foi quando me tentei suicidar, dentro de uma pensão”.

Quis voltar para o Centro Maria Madalena, mas a vaga que deixara já tinha sido ocupada. Foi então que “deus desceu à terra” na forma da ‘enfermeira’ Ana Campos Reis, que, ciente da situação, o acolheu e colocou num apartamento que pertencia à Casa Amarela – o mesmo onde vivia Américo. “Nesse dia, não sei o caminho que teria levado se isto não tivesse acontecido. Se calhar não estava aqui hoje”.

“O Paulo [segundo nome de Américo] era daquelas pessoas que tratava do apartamento todo, limpava as casas de banho e andava sempre em cima dos outros para limparem qualquer coisa. Então a enfermeira virou-se para ele e disse ‘agora tomas conta do Ricardo'”, conta.

Foi Américo quem o ajudou a controlar a medicação de que muitas vezes se esquecia. Um traço de cuidador que, relembra Américo, remonta aos tempos da Casa Pia. Já na Casa Amarela, conta, ajudava a dar banho e a cuidar de colegas em estado terminal, e chegou mesmo a viver em vários apartamentos da Santa Casa onde eram colocados outros doentes a quem, por vezes, lhe cabia cuidar.

Juntos, viveram em vários destes ‘apartamentos terapêuticos’ com outros doentes. Ao fim de vários pedidos junto da câmara municipal e a intervenção da própria Ana Campos Reis foi atribuída uma casa de habitação social a Américo, onde reside com Ricardo desde 2013.

Cicatrizes do passado visíveis no futuro

Só então, aos 35 e 42 anos, Ricardo e Américo encontraram paz, sossego e alguma qualidade de vida. Sete anos mais tarde, com casa própria, a vida estabilizou. Ainda assim, a SIDA e o VIH têm consequências que notam no corpo todos os dias. Depois de perderem algum tempo a contá-los, Ricardo diz que toma oito comprimidos por dia e Américo 16, felizmente comparticipados na maioria dos custos. Caso contrário tornar-se-ia impossível pagá-los a todos, “só os antirretrovirais custam quase quinhentos euros”.

Já as chamadas doenças oportunistas, que assombram os doentes com VIH imunodeprimidos, essas vão e vêm. Ricardo já venceu um síndrome de Kaposi, teve hepatite B e C, que ultrapassou. Teve também tuberculose – pulmonar e renal -, precisa de ser operado aos dois pulsos e queixa-se de problemas nos ombros que os médicos atribuíram a efeitos secundários da medicação. “É uma sensação desconfortável, parece que tenho a pele queimada”, conta. Américo tem diabetes, problemas de coração e vertigens, entre outras comorbidades que não se aborrece a enumerar.

Questionados sobre a forma como lidam com os problemas de saúde, Ricardo admite que toma os seus cuidados, sabe os seus limites, mas que às vezes até se chega a esquecer que tem a doença. Já Américo tem “medo”. “O pior de tudo são as doenças oportunistas. Embora a pessoa tenha a carga viral negativa o corpo fica enfraquecido”.

Uma viagem no tempo que acabou com um passeio à ‘Casa Amarela’, aquela que durante muitos anos os acolheu e continua a receber, garantindo-lhes as refeições diárias. Com casa paga, alimentação garantida e medicamentos comparticipados quase na totalidade, reconhecem uma profunda dependência dos apoios sociais que, sublinham, “o Estado não nos pode tirar”.

Reportagem de João Marques e Vaishaly Camões

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