A inclusão no Plano Nacional de Vacinação da vacina contra Vírus do Papiloma Humano veio revolucionar a área e salvar vidas. Ainda não se sabe quantas, mas as estimativas apontam para milhares. Dados nacionais mostram uma redução de cerca de 90% na taxa de infeção por HPV16/18 nas raparigas com menos de 25 anos (sendo que estes dois genótipos são responsáveis por cerca de ¾ dos cancros do colo do útero!). Para abordar esta e outras questões sobre a infeção por HPV, entre as quais a do alargamento da cobertura vacinal aos rapazes, fomos falar com o Dr. Pedro Vieira Baptista, Responsável pela Unidade de Trato Genital Inferior do Hospital de São João e Secretário Geral da International Society for the Study of Vulvovaginal Disease
Healthnews (HN) – O que é o Vírus do Papiloma Humano (HPV) e de que forma está ligado ao Cancro do Colo do Útero
Pedro Vieira Baptista (PVB) – Há cerca de 120 vírus do papiloma que infectam o ser humano; destes, cerca de 35-40 infectam a região anogenital. Por sua vez, destes, 14 (HPVs de alto risco) têm o potencial de causar o cancro do colo uterino, bem como outros cancros (vagina, vulva e ânus). A infeção por um destes genótipos é um fator obrigatório para o desenvolvimento de um cancro do colo do útero.
Existem também HPV de baixo risco, que muito raramente estão associados a lesões malignas, mas podem ser causadores de condilomas (verrugas) e de lesões intraepiteliais de baixo grau do colo do útero, vagina, vulva e ânus (com baixíssimo potencial de progressão).
A transmissão destes vírus é quase sempre por via sexual, sendo fundamental salientar que a infeção por, pelo menos, um genótipo é quase universal: 80-90% dos indivíduos têm contacto ao longo da vida com este vírus. Ainda que o risco seja maior em indivíduos com mais parceiros, que tenham iniciado a vida sexual mais precocemente, com “hábitos de risco”, imunodeprimidos e fumadores, não é possível estabelecer um padrão de “quem é afetado”.
A infeção é assintomática e habitualmente quem transmite não tem noção de que está infetado.
A prevenção do cancro do colo do útero faz-se a vários níveis:
– Comportamentos: evitar comportamentos de risco (diminuição do número de parceiros, uso de preservativo – que confere proteção parcial, não fumar);
– Vacinação contra o HPV;
– Rastreio – previamente com citologia (Papanicolau) e, atualmente, com teste de HPV.
O rastreio tem por objetivo selecionar mulheres com risco acrescido de ter uma lesão precursora de cancro do colo do útero (lesão intraepitelial de alto grau), para realização de colposcopia. Quando essas lesões são detetadas, e de acordo com a sua “gravidade”, poderá optar-se pelo tratamento (exérese da zona de transformação/”conização”) ou vigilância (opção possível, nalguns casos, em mulheres mais jovens). Outras lesões (lesões intraepiteliais de baixo grau) ou casos em que há apenas infeção sem lesão poderão ser apenas vigiados.
Não há presentemente tratamento para a infeção pelo HPV: tratam-se as lesões causadas pelo vírus, quando relevante.
HN – As mulheres também beneficiam da vacinação contra o HPV ter sido alargada aos rapazes e estar agora disponível, também para eles, no PNV?
PVB – Em Portugal, felizmente, temos uma taxa de vacinação contra o HPV, em raparigas, muito elevada (rondando os 90%).
Nos países onde a taxa de cobertura nas raparigas é inferior, a vacinação neutra em termos de género terá mais impacto do que entre nós!
A doença por HPV tem um muito maior impacto na mulher, mas o homem também pode desenvolver condilomas, cancro anal, peniano, escrotal e da orofaringe (amígdala e base da língua). O maior benefício imediato nos homens será a redução das verrugas (que será mais evidente nos homens que tenham atividade sexual com mulheres não vacinadas ou com outros homens). A longo prazo, é expectável uma diminuição da incidência de cancro anal e eventualmente dos cancros da orofaringe.
HN – Qual o impacto que a vacinação contra o HPV tem em termos de saúde pública?
PVB – As vacinas contra o HPV têm tido a particularidade de nos surpreender pela positiva por apresentarem um impacto quase sistematicamente superior ao esperado: foram desenhadas, inicialmente, para reduzir/eliminar a infeção pelo HPV16 e 18 (cancro do colo do útero) e 6/11 (condilomas).
Na prática, tem-se verificado um impacto sobre mais genótipos (proteção cruzada) e em doença noutras localizações!
O impacto, em termos de cancro, não é ainda evidente, pois trata-se de uma doença com uma história natural longa. – As primeiras raparigas vacinadas no PNV têm agora 28-29 anos. Há indicadores indiretos que nos mostram que estamos no bom caminho, nomeadamente a redução dos condilomas genitais (não sendo precursoras de lesões malignas, são a mais direta prova que temos, de momento, de que as vacinas funcionam), das citologias alterados e das lesões precursoras.
Temos, inclusivamente, dados nacionais que mostram uma redução de cerca de 90% na taxa de infeção por HPV16/18 nas raparigas com menos de 25 anos (sendo que estes dois genótipos são responsáveis por cerca de ¾ dos cancros do colo do útero!).
HN – Há vantagens em se vacinar as mulheres adultas que já não têm idade para usufruir da vacinação gratuita do PNV?
PVB – Sem dúvida! A eficácia da vacina diminui com a idade: não apenas pelo aumento da exposição prévia à infeção, mas porque a própria resposta do sistema imunitário decresce. Contudo, há potencial benefício na vacinação de todas as mulheres até aos 40 anos (acima dessa idade, a ponderar caso-a-caso). Muitas vezes há a crença de que não vale a pena vacinar mulheres sexualmente ativas ou com história prévia de infeção por HPV – nada mais errado!
Atualmente, está demonstrado que, em mulheres com história de lesão “grave”, a vacina reduz o risco de recorrência em mais de 80%, independentemente da idade. Infelizmente, mesmo com esta evidência, a vacina não é comparticipada neste grupo! Muito frequentemente, as mulheres queixam-se de não terem dinheiro para tomar a vacina ou de terem que fazer significativos sacrifícios para tal!
Outros grupos onde seria fundamental vacinar (gratuitamente ou significativamente comparticipado) seriam, por exemplo, as mulheres previamente a um transplante ou ao início de medicamentos biológicos!
HN – Há vários outros cancros associados ao HPV. Qual é a especificidade do Cancro do Colo do Útero que faz com que seja mais discutido?
PVB – O cancro do colo do útero é comum (800-900 casos/ano em Portugal) e mata mulheres em idade jovem. Temos meios eficazes de rastreio, que nos permitem identificar as lesões precursoras e dispomos de tratamento eficaz para estas lesões. Claramente, é um cancro evitável!
Em relação aos outros cancros, são mais raros e não há meios eficazes de rastreio, embora já haja recomendações para o rastreio do cancro anal em populações específicas.
HN – Para além da vacinação, existe também o rastreio organizado para prevenção do cancro do colo do útero. A época de pandemia que atravessamos tem tido impacto nesta área?
PVB – Nas mulheres que já estavam a ser rastreadas com teste de HPV, o impacto será pequeno: se há alguns anos se defendia que um teste negativo “dava segurança” por 3 anos, hoje não temos dúvidas que podemos alargar este intervalo para 5 anos (e provavelmente até mais!).
Assim, a grande preocupação está nas mulheres não rastreadas ou rastreadas apenas com Papanicolau.
Nestes últimos meses, certamente, muitas mulheres deixaram de ser incluídas no rastreio organizado, com potencial perda de oportunidade de identificar lesões antes da fase de invasão.
A nível da Unidade de Trato Genital Inferior do Hospital de São João temos notado uma menor referenciação de casos.
HN – Por fim, qual é a importância de efemérides como a Semana Europeia de Prevenção para o Cancro do Colo do Útero?
PVB – Temos dado passos decisivos na redução do cancro do colo do útero – ao ponto de já almejarmos a sua erradicação. Não é tempo de relaxar, há ainda muito para fazer!
Temos uma geração vacinada, na qual a doença grave por HPV vai ser rara, mas temos ainda muitas mulheres não vacinadas e não adequadamente rastreadas.
A chave para o sucesso é persistir neste caminho!
HN – Que conselho deixaria às mulheres que, por algum motivo, não têm idas regulares ao médico (seja o ginecologista ou o médico de família)
PVB – Gostaria de deixar o conselho, às mulheres com mais de 25 anos, que não tenham realizado um teste de HPV nos últimos 5 anos (ou um Papanicolau há menos de 3 anos) que recorram ao seu médico de família ou ginecologista para fazerem colheita para teste de HPV. O teste de HPV está disponível em todos os Centros de Saúde portugueses – é uma oportunidade a não desperdiçar!
Um teste negativo tranquiliza por, pelo menos, 5 anos. Por outro lado, tem muito menos “falhas” do que o Papanicolau – o risco de escapar alguma lesão grave é muito baixo!
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