Avaliar a atuação da comissão europeia sobre o dossier das vacinas é uma tarefa complexa. Numa primeira fase esteve bem, ao recusar o nacionalismo de vacinas e mostrando-se razoavelmente comprometida com a saúde internacional. A pandemia é um problema global, pelo que a solução tem necessariamente de ser global.
A comissão providenciou investimento público e assumiu o risco, o que facilitou o desenvolvimento das vacinas. Negociou antecipadamente preços, com melhores preços que os EUA ou Reino Unido, tendo disponibilizado a todos os estados membros as vacinas encomendadas. Portugal conseguiu desta forma 18 milhões de doses, tendo recusado a possibilidade de adquirir 800 mil doses da Moderna, que só chegariam em dezembro. Dificilmente Portugal conseguiria ter esta disponibilidade de vacinas, nem de uma forma tão precoce, caso não fosse dentro do sistema da UE.
O problema começou no momento posterior. Por ingenuidade, fé ideológica, ou desconhecimento, os tratados não acautelaram a produção e distribuição. Os fabricantes, enquanto anunciavam aumento de entregas nos EUA, afirmavam ser impossível cumprir os contratos com a UE, o que trouxe claras repercussões no plano vacinal dos estados membros. No plano inicial português, estava previsto que iriamos receber cerca de 4 milhões de doses até 31 março, na realidade vamos ficar pelas 1,9 milhões. Podíamos já estar a vacinar o grupo prioritário II e a desconfinar com a segurança de ter os grupos mais vulneráveis protegidos. Pelo contrário, ainda estamos e iremos estar nos próximos meses, num ambiente de restrições, para manter a incidência inferior a 140 casos por cem mil habitantes.
Na dimensão da diplomacia da saúde, a UE tem mantido alguma relevância, embora menos que a Rússia ou China, que utilizam as vacinas como prolongamento do seu soft power. Entre doações, vendas e partilha de tecnologia, grande parte do sul global tornou-se dependente da plataforma Covax, com produção indiana, ou das vacinas russas e chinesas. Portugal prometeu 900 mil vacinas aos PALOP’s e Timor-Leste, embora seja desconhecido o calendário de entregas ou a forma de distribuição pelos países. É um bom gesto, que deveria ser acompanhado pelo reforço da cooperação entre a CPLP. O nosso sucesso em controlar a Covid, retomar uma normalidade para as nossas vidas e economia, também está dependente do sucesso dos países com quais temos proximidade em termos culturais, sociais e económicos. E nunca é demais relembrar, que ao deixar bolsas de transmissão da Covid, estamos a contribuir para que o vírus se mute, e, inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, uma das mutações irá ser capaz de ganhar resistências aos anticorpos.
Acontece que a UE só pode atuar na sua forma externa, na extensão das competências internas que tem. Na área da saúde, são manifestamente reduzidas, como a pandemia veio demonstrar. A presidência portuguesa pode aprofundar a união nos temas da saúde, tornando mais próxima a cooperação entre estados-membros e a consecução dos objetivos de saúde, tanto internos como externos. A decisão sobre a ativação do artigo 122º do tratado do funcionamento da União Europeia, que prevê em circunstâncias excecionais, a capacidade de anular patentes ou assumir o controlo das unidades produtivas, como assumido recente pela presidente da comissão, seria uma medida capaz de tornar mais célere a produção e distribuição de vacinas, tanto internamente como externamente, tornando a União o maior contribuinte para a saúde global. Na história da UE só foi utilizado por uma vez, durante a crise petrolífera dos anos 70. Se há momento para que volte a ser utilizado, é sem dúvida, na maior crise da nossa geração.
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