O médico e sociólogo norte-americano Nicholas Christakis (na imagem) defende em entrevista, que a reação da espécie humana à covid-19 mostra que não se aprendeu muito com as pragas e epidemias da História.
“Infelizmente, não aprendemos muito. Nós pensamos que isto é uma loucura. Mas as pragas atingem a nossa espécie há milhares de anos: estão na Bíblia, estão em Homero, estão em Shakespeare, em Cervantes”, afirma o autor do livro “A Flecha de Apolo”, publicado em Portugal em março passado pela editora 20|20, em que se analisa “o impacto profundo e duradouro” da pandemia que começou em 2019 na cidade chinesa de Wuhan.
Nicholas Christakis, que dirige o Laboratório da Natureza Humana na universidade norte-americana de Yale, elenca mentiras, responsabilização do outro e dor como “respostas sociais típicas às pragas”.
“Tudo a que assistimos agora já aconteceu antes”, salienta, indicando que “o que as epidemias fazem é destruir temporariamente as sociedades”.
“As epidemias geram mentiras. Pensamos que é de agora que se fala de desinformação, com o [ex-presidente norte-americano] Trump a dizer às pessoas para tomarem hidroxicoloroquina ou para se injetarem com lixívia, estas mentiras malucas, mas sempre houve superstições em tempos de praga, sempre houve quem as negasse”, argumenta.
Quando uma epidemia conhecida como a Gripe Russa atingiu Londres em 1890, “algumas pessoas pensaram que não era real e que tinha sido apenas ‘lançada pelo telégrafo’”, refere Nicholas Christakis em “A Flecha de Apolo”.
“No entanto, como um autor anónimo observou num artigo acerca da epidemia na revista médica britânica The Lancet, ‘o número de pessoas que se acotovelam para entrar nos hospitais e dispensários constituem resposta suficiente a tal sugestão”, nota Christakis.
O mesmo autor anónimo do século XIX referia que “uma coisa é negar as razões para o pânico, outra é exortar à imprudência da despreocupação”.
A razão, sugere Christakis, é que, confrontados com uma realidade desagradável, as pessoas “não querem admitir que isto está a acontecer”.
“A tristeza e a dor são também respostas típicas que muitas pessoas em Portugal sentem agora, dor pela perda de vidas, pela perda de empregos, pela perda dos seus modos de vida. As pessoas sentem falta de ver os seus amigos, de ir a restaurantes, dos avós que perderam, dos seus empregos”, ilustra.
“E culpar os outros é muito típico. Durante a peste bubónica, os judeus foram culpados. Os portugueses culparam os espanhóis e os espanhóis culparam os portugueses. Durante a epidemia do HIV, os homossexuais e os utilizadores de drogas foram culpadas, quando o vírus está a matar seres humanos, não há ninguém a culpar”, refere o académico.
Outro aspeto típico das pandemias é o seu impacto assimétrico, como se verifica hoje na Europa, em que os números de infeções baixaram em países como Portugal, mas estão a subir ao mesmo tempo no leste do continente.
“Há sempre variações geográficas, algumas das quais dependem da demografia do país” ou de características sociais como “a estrutura familiar, a prosperidade de uma sociedade, as ações tomadas pelo Governo, a maneira como o vírus entrou, o clima”, mas essas variáveis que explicam apenas metade.
“A outra metade deve-se apenas à sorte. É o acaso. É um pouco como numa tempestade, um furacão ou um incêndio que atinge uma cidade, que queima tudo menos algumas casas que escapam ao fogo e não sabemos porquê”, acrescenta.
Outro efeito comum das epidemias é serem “aceleradores de tendências que já existiam nas sociedades”, o que no caso da covid-19 se vê, por exemplo, no teletrabalho.
“Muitos empregadores viram que não precisam de tanto espaço físico, podem poupar dinheiros e os trabalhadores ficarão satisfeitos se puderem trabalhar de casa”, indica.
Recorrendo ao passado, aponta o fim das “escarradeiras”, baldes metálicos que existiam nos lugares públicos para cuspir, trazido pela pandemia da gripe pneumónica de 1918.
“Havia em Nova Iorque grandes cartazes em que se lia “Escarrar é mortal” e todas as escarradeiras foram retiradas dos lugares públicos. Foi uma mudança permanente na sociedade que foi fomentada pela epidemia”, diz.
Nicholas Christakis defende que é preciso entender as epidemias como “fenómenos sociais e biológicos” porque “Afetam corpos e comportamentos e há epidemias paralelas de germes e de ideias durante tempos de pragas”.
“Uma praga é como um dos quatro Cavaleiros do Apocalipse. Mas as mentiras são como o seu escudeiro, como Sancho Pança a segui-los. Temos que olhar para ambas as perspetivas”, remata.
vacinas não são princípio do fim de pandemia
O médico e sociólogo que as vacinas não são ainda o princípio do fim da pandemia, considerando que demorará anos a limpar “os destroços” da covid-19.
“Somos a primeira geração de humanos viva que conseguiu, em tempo real, criar uma contramedida específica e eficaz contra a praga que atravessa. Na época medieval, pensavam que se esfregassem na pele uma mistura de cebolas e serpentes moídas, isso resultava contra a peste. É claro que não resultava. Nós temos algo que resulta, que vai salvar muitas vidas, mas não vai alterar assim tanto o curso da pandemia”, prevê o professor da universidade norte-americana de Yale.
“Penso que não estamos no princípio do fim desta pandemia, mas que estamos a aproximarmo-nos do fim do princípio”, afirma, usando uma frase celebrizada pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill num discurso proferido em 1942 após uma das primeiras vitórias dos Aliados contra o exército alemão na II Guerra Mundial, no deserto do Egito.
“Inventámos estas vacinas, mas agora vamos ter que fabricar milhões de doses, administrá-las e, o mais importante, temos que convencer as pessoas a tomá-las. Tudo isso vai levar tempo e, no entretanto, o vírus continua a espalhar-se”, salienta.
Para Nicholas Christakis, doutorado em saúde pública pela Universidade de Harvard, não será antes “do fim de 2021, princípio de 2022” que se atingirá, quer pela via natural das infeções, quer pela vacinação, “o limiar crítico a que se chama imunidade de grupo”, em que “50, 60, 70 por cento” da população terá sido exposta ao SARS-CoV-2.
Só nessa altura “a epidemia começará a abrandar e a parar, o que será o fim do período pandémico imediato”, a primeira de três fases, seguida de um período intermédio e um período pós-pandémico.
“Como um tsunami que invade a terra, a água recua e há destroços por toda a parte. Vamos ter de os limpar. Em Portugal, no Brasil, em outros países europeus e na América do Norte, milhões de pessoas terão morrido e milhões ficarão debilitadas mesmo se sobreviverem” à covid-19, afirmou o professor da universidade norte-americana de Yale.
Christakis, que dirige o Laboratório da Natureza Humana na universidade no estado do Massachussetts, acredita que a sociedade “vai recuperar, mas vai levar tempo”, lembrando que ficarão sequelas dos “milhões de crianças que não foram à escola, dos milhões de pessoas que perderam o emprego e dos milhões de negócios que faliram”.
Lá para 2024, começará o que antevê como “uma festa”, em que o mundo terá deixado para trás “o choque biológico e epidemiológico do vírus”.
“Depois de terem estado enclausuradas tanto tempo, as pessoas irão procurar avidamente oportunidades de socializar em discotecas, em restaurantes, em bares, em eventos desportivos, em concertos, comícios. Poderemos assistir a alguma licenciosidade e mudanças nos comportamentos sexuais”, refere.
Será também ocasião “para as pessoas começarem a gastar o dinheiro que não puderam durante a praga, durante o colapso económico, ou que pouparam para o caso de adoecerem”.
“Vamos recuperar, mas não será fácil. Vai levar tempo. Penso que a falta de contacto social entre as pessoas mais jovens se fará sentir. Para as pessoas que estão na casa dos 20, é uma parte muito importante da vida, em que se tenta encontrar e aprender a ser um bom ou boa parceira, em que se experimenta a sexualidade, e com um país em confinamento, é muito diferente ter essas experiências de que se necessita”, indica.
“E quanto às pessoas na casa dos 40 que perderam o emprego, será difícil recuperarem-no. Estamos a viver experiências traumáticas como sociedade. As pessoas deixam as grandes cidades durante as pragas, essa é uma resposta típica. Estamos a assistir a isso nos Estados Unidos, em muitas cidades europeias, mas as pessoas regressarão, não será uma coisa permanente, tal como o encerramento das fronteiras. A livre circulação de pessoas regressará com o tempo”, acrescenta.
No seu mais recente livro, “A Flecha de Apolo”, publicado em março em Portugal pela editora 20|20, Nicholas Christakis analisa séculos de pandemias que ocorreram na História e contextualiza nelas a covid-19.
“As pandemias respiratórias acontecem a cada 10 ou 20 anos, mas a cada 50 ou 100 anos temos uma grave, como esta. Estamos a passar por um acontecimento que ocorre uma vez por século. Uma praga é isto. Embora seja comum para a nossa espécie, para nós é raro”, analisa.
O título do seu livro sobre a covid-19 refere-se a uma história da mitologia grega em que o deus que trazia a doença, Apolo, furioso com os gregos durante a Guerra de Tróia, lançou sobre eles as suas flechas, dizimando-os durante nove dias e só parando ao décimo dia.
Para Nicholas Christakis, depois do “décimo dia” da pandemia da covid-19, estaremos a viver “num mundo muito diferente, porque teremos deixado a praga para trás”.
“É a nossa altura de enfrentarmos esta provação e temos que mostrar do que somos feitos e como conseguimos lidar com ela”, defende.
NR/HN/LUSA
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