Em entrevista exclusiva à HealthNews e a propósito do Dia Mundial da Meningite, Cristina Camilo (pediatra da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos – UCIPed – do Hospital Santa Maria e presidente da Sociedade de Cuidados Intensivos Pediátricos) aborda aspetos fundamentais da prevenção, diagnóstico e tratamento de uma doença que continua a assustar os portugueses. A especialista frisa, sobretudo, a importância de um diagnóstico precoce e uma intervenção terapêutica sem demoras, no sentido de melhorar o prognóstico do doente, sem esquecer a mais-valia da aposta (individual, familiar e coletiva) nas vacinas, como por exemplo no caso das meningites meningocócicas.
Healthnews (HN) – O que nos dizem os dados de incidência da meningite a nível nacional, numa perspetiva de evolução histórica?
Cristina Camilo (CC) – Infelizmente, em Portugal não é muito fácil a obtenção de dados fidedignos sobre a incidência de diversas patologias, pois não há um registo nacional centralizado. Desta forma, é impossível saber a real incidência da meningite a nível nacional. Os únicos registos existentes são publicações de casuísticas isoladas de alguns serviços de internamento hospitalar.
No entanto, duas das bactérias mais frequentemente causadoras de meningite têm sido estudadas à escala nacional. O Grupo de Estudo da Doença Invasiva Pneumocócica da Sociedade de Infeciologia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) estudou a incidência global da doença pneumocócica invasiva em idade pediátrica no nosso país que, de 2006 a 2014,variou entre 6,3 e 4,6/100 000 crianças e adolescentes. Considerando todas as faixas etárias, Portugal tinha em 2017 uma taxa de 2,9 casos por 100 mil habitantes, quando a média europeia era de 6,2.
Em relação à doença invasiva causada pela Neisseria meningitidis, existe desde 2002 um Sistema de Vigilância Epidemiológica Integrada da Doença Meningocócica que envolve a DGS e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA). Este sistema revelou que a taxa de incidência global em 2007 era de 1,11 casos por 100 mil habitantes, valor que foi reduzido para 0,41 casos por 100 mil habitantes, em 2016.
HN – A meningite infeciosa pode ser causada por diferentes agentes etiológicos. Quais os mais prevalentes na atualidade, em Portugal?
CC – Existem diferentes agentes infeciosos que podem causar meningite. Os vírus são os agentes mais comuns e por norma são infeções menos graves, embora em alguns casos possam ser fatais ou causar grande morbilidade. A meningite viral (também designada meningite asséptica) é causada mais frequentemente por enterovírus, tais como ecovírus e coxsackie.
No que respeita às bactérias, as mais frequentemente envolvidas são a Neisseria meningitidis (meningococo) e o Streptococcus pneumoniae (pneumococo). O Haemophilus influenzae tipo B era um agente muito frequente há algumas décadas atrás, mas neste momento só tem alguma expressão nos pequenos lactentes, que ainda não têm a vacinação completa.
As meningites bacterianas são infeções muito graves e que mais frequentemente levam a complicações e podem ser fatais.
Existem também fungos que causam meningite, sobretudo em doentes imunocomprometidos, sendo mais raros nas pessoas previamente saudáveis. Por fim, há que contar com os parasitas, agentes infeciosos mais frequentes em países menos desenvolvidos. Em Portugal, é rara a meningite por estes agentes, mas nos doentes imunocomprometidos podem ter alguma importância.
HN – Como classificaria o impacto da meningite em termos de cuidados pediátricos intensivos? É sobretudo um desafio de complexidade?
CC – Quando uma criança com meningite necessita de cuidados intensivos isso significa que corre risco de vida. O seu estado de consciência pode estar alterado, com sinais de sofrimento cerebral, o que pode condicionar lesões cerebrais secundárias, que se somam às lesões causadas pela própria infeção e podem levar a sequelas graves permanentes, ou mesmo à morte.
O maior desafio é conseguir identificar rapidamente a gravidade da doença, para se iniciar precocemente não só o tratamento da meningite, mas também as medidas que podem prevenir a lesão cerebral secundária, na tentativa de melhorar o prognóstico. De qualquer forma, em alguns casos mais complexos, para além da envolvência dos colegas da Infeciologia e Neurologia pediátricas, é necessária a intervenção de outras especialidades como a Neurocirurgia, o que implica o internamento numa unidade de cuidados intensivos de um centro hospitalar mais diferenciado e com maiores recursos.
HN – O que tem a Sociedade de Cuidados Intensivos Pediátricos (SCIP) procurado fazer para melhorar a formação dos profissionais de saúde, no domínio do diagnóstico e tratamento da meningite?
CC – A formação dos profissionais de saúde nesta área é muito importante, pois como referi anteriormente o diagnóstico precoce é essencial para um melhor prognóstico.
Anualmente, na reunião da SCIP, onde participam todas as Unidades de Cuidados Intensivos Pediátricos (UCIPs) portuguesas, debate-se este e outros temas, atualizando-se o “estado da arte” e tentando melhorar e uniformizar a abordagem diagnóstica e o tratamento. Frequentemente organizamos cursos para formação de outros médicos, em particular internos de Pediatria (médicos mais novos em formação especializada), que fazem urgência nos diferentes hospitais do país e que são aqueles contactam em primeiro lugar com os doentes, tendo um papel fulcral no reconhecimento precoce desta patologia. Também já organizámos reuniões conjuntas com enfermeiros que trabalham nas urgências pediátricas e nas UCIPs, com vista ao aperfeiçoamento da triagem inicial destas situações e à otimização dos cuidados e procedimentos.
HN – Como caracterizaria hoje o acesso a cuidados altamente diferenciados por parte das crianças afetadas por meningite? Temos vindo a melhorar substancialmente nessa vertente?
CC – O acesso aos cuidados mais diferenciados melhorou muito nos últimos anos, sobretudo desde que o transporte inter-hospitalar pediátrico (TIP) passou a abranger todo o território nacional continental, em 2012.
Este transporte é feito por uma equipa especializada (médico, enfermeiro e técnico de emergência pré-hospitalar), numa ambulância especialmente equipada, com todos os recursos necessários para levar a UCIP até ao doente, que está num hospital em que não existem cuidados intensivos pediátricos, ou está num centro de saúde. Desta forma, consegue-se uma estabilização mais precoce da criança gravemente doente. O TIP é uma parceria entre o INEM e o CHU São João, na zona norte, o CHU de Coimbra – Hospital Pediátrico na região centro, o CHU Lisboa Norte e o CHU Lisboa Central na zona sul e o CH do Algarve, na região algarvia.
HN – E do ponto de vista da rapidez do diagnóstico precoce e referenciação, ao nível dos cuidados de saúde primários e dos hospitais de menor dimensão, temos assistido a avanços significativos nos últimos anos?
CC – Desde que se iniciou o transporte inter-hospitalar pediátrico têm sido feitas formações nos diferentes serviços de pediatria dos hospitais de menor dimensão, sobre a estabilização da criança gravemente doente, incluindo temas como meningite, sepsis, ou convulsões, por exemplo. Desta forma, as equipas médicas e de enfermagem destes hospitais ficam mais aptas a identificar estas situações e a iniciar o tratamento mais adequado. Também a nível dos cuidados de saúde primários tem havido uma grande preocupação na formação dos profissionais, não só a nível local, mas também em cursos organizados nos centros hospitalares universitários dirigidos a estes profissionais.
HN – Quão precoce deve ser o diagnóstico para uma intervenção médica de sucesso?
CC – O mais precocemente possível. Ou seja, assim que se iniciam os sintomas sugestivos de meningite, as crianças devem ser observadas e se o exame objetivo for compatível com esse diagnóstico deve-se avançar para os exames complementares, nomeadamente avaliação laboratorial e punção lombar, para confirmação diagnóstica e início da terapêutica adequada.
Se a primeira observação for feita a nível dos cuidados de saúde primários, perante a suspeita de meningite as crianças devem ser encaminhadas para a urgência hospitalar.
HN – Têm surgido, em anos recentes, novas tecnologias diagnósticas, capazes de detetar os principais vírus e bactérias envolvidos na meningite… Estas novas tecnologias estão amplamente disponíveis em Portugal? Como avalia, a este propósito, a utilidade dos diagnósticos PCR multiplex na abordagem da doença?
CC – Atualmente, vários hospitais do país estão equipados com tecnologia que permite identificar material genético de micro-organismos causadores de infeção. Esta técnica denomina-se técnica de reação em cadeia de polimerase (PCR) e produz várias cópias de um gene, para identificar o micro-organismo. Em relação às bactérias e fungos, permite que, mesmo que não haja crescimento do agente infecioso nas técnicas tradicionais de cultura, se consiga detetar material genético e fazer-se uma identificação.
Mais recentemente surgiu a possibilidade de se fazer a amplificação de diferentes sequências genéticas simultaneamente (PCR multiplex), ou seja, procuramos vários agentes infeciosos ao mesmo tempo, o que pode acelerar o diagnóstico e o início do tratamento dirigido.
Mesmo nos hospitais menos capacitados é sempre possível a articulação com o INSA, onde são realizadas estas técnicas mais recentes.
HN – Estima-se que um em cada dez doentes morre e um em cada cinco sofre consequências graves, como amputações. Que ferramentas existem para contrariar esta realidade? Do ponto de vista terapêutico e quando a doença está instalada, as opções são mais válidas no presente, em comparação com o que acontecia há dez ou vinte anos atrás?
CC – Em relação às opções terapêuticas e aos recursos, sem dúvida que existe mais capacidade atualmente, quer no acesso aos cuidados intensivos, quer na capacidade dos hospitais mais pequenos em iniciarem o suporte necessário. Mas, na verdade, o que mais modifica o prognóstico da meningite é a rapidez do diagnóstico e início da terapêutica dirigida.
HN – O que podem os pais e demais educadores fazer, em termos preventivos?
CC – Em termos preventivos a arma mais eficaz é a vacinação. É uma prevenção primária, o que significa que evita que apareça a doença. Não sendo isso possível, é muito importante atuar rapidamente, pelo que os pais/cuidadores devem estar alertados para os sinais e sintomas que traduzem gravidade da doença, devendo dirigir-se a uma urgência de Pediatria rapidamente. É por isso muito importante que se façam campanhas de divulgação deste tema, que se comemore o Dia Mundial da Meningite, que os meios de comunicação tenham interesse por este assunto, de modo a colaborarem com os profissionais de saúde na informação à população.
HN – Falemos, então, um pouco das vacinas contra a doença invasiva meningocócica, que têm representado uma grande esperança. Qual é a sua opinião sobre o panorama atual destas vacinas, no que respeita à abrangência de serogrupos, facilidade de acesso e estratégias de administração?
CC – O novo Programa Nacional de Vacinação (PNV), que entrou em vigor em 2020, já abrange de forma universal a vacinação para a Neisseria meningitidis dos grupos C e B. Desta forma, no futuro toda a população estará protegida para estes agentes. Mas para as crianças e adolescentes mais velhos, os Pediatras e Médicos de Família devem continuar a recomendar a administração destas vacinas de uma forma universal. Como atualmente já existe uma vacina que engloba os serogrupos A, C, W, Y a recomendação, nas crianças não abrangidas pelo PNV atual, deverá ser a administração das duas vacinas (serogrupo B e serogrupos A, C, W, Y). Isto implica um maior esforço económico para as famílias, mas que deve ser feito para se evitar que uma doença prevenível possa ter consequências catastróficas para as famílias e comunidade. Em alguns grupos de risco, estão contempladas estas vacinas de forma gratuita. Também esperamos que, num futuro próximo, no PNV a vacina para o meningoco C possa ser substituída pela vacina que tem os serogrupos A, C, W, Y. Desta forma, a proteção será ainda mais completa.
HN – Na atual situação pandémica assiste-se a um natural afastamento dos hospitais por parte dos portugueses. O que recomendaria à população face a uma suspeita de meningite? Como deverá atuar?
CC – Embora ainda possa existir algum receio por parte da população em se dirigir a um serviço de saúde, penso que atualmente já é assumido que o risco é muito reduzido, quer nos hospitais, quer nos centros de saúde, pois os circuitos estão bem organizados nesse sentido. A minha recomendação é a mesma para a meningite ou qualquer outra doença grave, pois nestes casos a rapidez do diagnóstico e do início do tratamento dirigido é fundamental para se diminuir a possibilidade de sequelas graves.
Se os pais/cuidadores perceberem que a criança está mais prostrada (mais “murcha”), com febre, a vomitar ou com muita diarreia, com manchas ou pintas na pele, não quer comer ou faz-lhe impressão a luz, devem dirigir-se rapidamente a uma urgência de Pediatria de um hospital. Em caso de impossibilidade de acesso rápido a um hospital, devem dirigir-se ao centro de saúde.
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