Emanuele Cereda: “A nutrição ainda não é vista nem promovida como uma verdadeira terapêutica médica com impacto positivo nos resultados”

05/31/2021
O acesso a cuidados nutricionais de alta qualidade pode ser difícil, e isso aplica-se não apenas ao ambiente de cuidados intensivos, mas ainda mais após a alta, pois, em alguns países, os alimentos para fins médicos especiais não são reembolsados. Ainda há espaço para melhorias e acho que a COVID-19 tem enfatizado a existência de algumas falhas no sistema de saúde.

O Dr. Emanuele Cereda trabalhava na Fondazione IRCCS Policlinico San Matteo, em Pavia, quando soaram os alarmes em Itália, depois de a Covid-19 ter começado a infetar e a matar no país. Hoje, o nutricionista continua na unidade de Dietética e Nutrição Clínica do mesmo hospital, que cuida dos doentes com Covid-19 desde que o SARS-CoV-2 começou a contagiar na Europa. Inicialmente, o grande desafio foi o cenário de emergência – muitos doentes “precisavam de receber cuidados de alta qualidade e alta intensidade num curto período de tempo”. Agora, conta o nutricionista, já têm um protocolo para suplementação nutricional precoce em doentes com Covid-19 não críticos, mas continuam a enfrentar dificuldades. Para Emanuele Cereda, a Covid-19 “tem enfatizado a existência de algumas falhas no sistema de saúde”. No que toca à nutrição, considera que esta “ainda não é vista nem promovida como uma verdadeira terapêutica médica com impacto positivo nos resultados”.

HealthNews (HN)- Quando e onde começou o seu trabalho com doentes com Covid-19?
Emanuele Cereda (EC)- Como provavelmente sabe, o hospital onde trabalho (Fondazione IRCCS Policlinico San Matteo) localiza-se em Pavia (região da Lombardia), perto da área de eclosão da pandemia de COVID-19 na Europa. Portanto, pediram-nos para cuidarmos dos doentes com COVID -19 desde o início.

HN- Quando é que conseguiram definir um plano nutricional para o tratamento destes doentes?
EC- Demorou algum [tempo] pensar em fazer algo para providenciar melhores cuidados nutricionais. No nosso hospital, temos uma grande enfermaria dedicada ao tratamento de doenças infeciosas. Em duas semanas, estava cheia e, em menos de um mês, a maioria das enfermarias foi convertida para cuidados COVID. A nossa atividade no hospital está integrada com a das diferentes enfermarias médicas e cirúrgicas, onde realizamos numerosas consultorias para os diferentes doentes que necessitam de apoio nutricional. Mas, naquele momento, todos os pedidos eram para esses doentes [com Covid-19]. Muitos necessitaram de cuidados intensivos ou subintensivos e não se conseguiram alimentar espontaneamente. Por outro lado, ficou imediatamente claro que os doentes têm necessidades energéticas elevadas e estão debilitados, tornando, então, a necessidade de cuidados nutricionais cada vez mais evidente.

HN- Consegue explicar-nos alguns dos pontos principais do protocolo para suplementação nutricional precoce em doentes com Covid-19 não críticos?
EC- O nosso protocolo destina-se a doentes com COVID-19 não críticos que, apesar de não serem admitidos na UCI, são hospitalizados por causa de uma doença de gravidade moderada. Baseia-se na observação de que a maioria dos doentes apresenta, na admissão, inflamação grave e anorexia, ou não consegue alimentar-se adequadamente para ventilação não invasiva. Uma triagem nutricional simplificada é sistematicamente realizada na admissão. Dietas ricas em calorias, numa variedade de consistências, com comidas e snacks altamente digeríveis, juntamente com suplementação proteica (whey) de alta qualidade, devem ser fornecidas precocemente a todos os doentes. Todos os doentes recebem infusão intravenosa de soluções multivitamínicas e multiminerais. Na presença de défice de 25-hidroxivitamina D, o colecalciferol é prontamente fornecido. Por fim, em caso de risco nutricional, suplementos nutricionais orais de proteína-caloria são fornecidos; mas se a ingestão ainda for reduzida, a nutrição artificial integrativa é considerada dentro de 2-3 dias.

HN- Porque é que é importante seguir este protocolo? Pode este ser aplicado em diferentes países?
EC- Embora importantes questões nutricionais dos doentes com COVID-19 e o cenário de emergência sejam abordados com o nosso protocolo, eu não recomendaria uma adesão estrita e cega. Esta é uma proposta que poderia ser adaptada conforme necessário, principalmente tendo em conta a disponibilidade de skills nutricionais e de terapia. A nutrição é importante, mas profissionais de saúde dedicados [à nutrição] não estão disponíveis em todos os ambientes e de igual forma em todos os países. No entanto, o acesso ao suporte nutricional, incluindo ao reembolso, não é homogéneo em todo o mundo. De qualquer forma, o suporte nutricional precoce ajuda a melhorar o resultado, o que significa não apenas reduzir a mortalidade, mas possibilitar que os doentes recuperem melhor e mais cedo.

HN- Quais são os maiores desafios na implementação de cuidados nutricionais em doentes com Covid-19?
EC- O primeiro grande desafio que enfrentámos foi o cenário de emergência. Muitos doentes precisavam de receber cuidados de alta qualidade e alta intensidade num curto período de tempo. Às vezes, pedidos elevados eram difíceis de satisfazer, devido, particularmente, à falta de profissionais de saúde. A COVID-19 levou ao isolamento dos doentes, resultando em limitações importantes na assistência durante as refeições.

HN- Em que doentes é esse desafio ainda maior?
EC- Sem dúvida, mais uma vez, quem mais pagou pelas consequências foram os idosos fragilizados.

HN- Quão importante é ainda haver preocupação com os requisitos energéticos após a alta?
EC- Estudos recentes, utilizando metodologia apropriada para medir as necessidades energéticas, destacaram um perfil metabólico invulgar em doentes com COVID-19. Nos estágios iniciais da doença, mesmo na UCI, os doentes são hipometabólicos, mas, depois, tornam-se hipermetabólicos por várias semanas … mais do que os outros doentes que costumávamos cuidar, para os quais já estava bem estabelecido que os requisitos de energia na fase de recuperação são significativamente aumentados, particularmente em termos de necessidades de proteína. A proteína deve ser de alta qualidade, pois todos os órgãos, e particularmente os músculos, ficaram esgotados pela tempestade de citocinas. Na ausência de cuidados nutricionais de alta qualidade na fase de recuperação, é improvável que os doentes consigam evitar alguns graus de incapacidade e diminuição da qualidade de vida.

HN- Acha que as pessoas sabem o suficiente sobre nutrição e cuidam bem de si mesmas diariamente?
EC- Ainda não, infelizmente. Ainda há muito trabalho a fazer para aumentar a consciencialização e o tratamento. Na minha opinião, a nutrição ainda não é vista e promovida como uma verdadeira terapêutica médica com impacto positivo nos resultados.

HN- O que aprendeu com esta difícil experiência?
EC- Não há limite para a nossa capacidade de aprender. Nós começámos por estar substancialmente impreparados e ainda enfrentamos dificuldades em otimizar o suporte nutricional em todos os doentes. Pediram-me várias vezes para falar sobre a nossa abordagem, e discuti com muitos clínicos de diferentes países. As situações locais são extremamente heterogéneas, e embora seja claro que a nutrição desempenha um papel (geralmente comemos pelo menos três vezes por dia em condições saudáveis!), em muitos casos, o seu fornecimento não é um cuidado standard. Às vezes falta pessoal qualificado; às vezes as skills não são suficientes. Portanto, o acesso a cuidados nutricionais de alta qualidade pode ser difícil, e isso aplica-se não apenas ao ambiente de cuidados intensivos, mas ainda mais após a alta, pois, em alguns países, os alimentos para fins médicos especiais não são reembolsados. Ainda há espaço para melhorias e acho que a COVID-19 tem enfatizado a existência de algumas falhas no sistema de saúde.

Entrevista de Rita Antunes

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