A Miocardiopatia amiloide associada a transtirretina (ATTR-CM) é considerada uma doença rara que afeta vários órgãos, em especial o coração. De acordo com o cardiologista do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/ Hospital Santa Cruz, Carlos Aguiar, esta patologia “poderá representar cerca de 13% das causas etiológicas da insuficiência cardíaca”, defendendo, por isso, uma maior atenção as “pequenas queixas” cardíacas e neurológicas. O atraso no diagnóstico poderá significar uma taxa de sobrevivência “desde o aparecimento dos primeiros sintomas na ordem dos três ou quatro anos”.
O que começaria por dizer para quem pouco ou nada saiba de Miocardiopatia amiloide associada a transtirretina?
Como cardiologista, diria que é uma doença cardíaca rara, progressiva e potencialmente fatal. Apesar de ser do foro cardiológico, é multissistémica por natureza, o que quer dizer que tem manifestações variadas como gastrointestinais, neurológicas, oftalmológicas ou até ortopédicas para além das cardíacas. E por ser progressiva, estas situações poderão manifestar-se ao longo de anos e evoluir de forma lenta. É, para além de rara, pouco reconhecida, porque até há pouco tempo não só não tínhamos opções especificas de tratamento, mas também porque requeria a utilização de técnicas de diagnóstico invasivas, como a biópsia endomiocárdica, o que hoje sabemos já não ser o caso, pelo menos para a maioria dos diagnósticos. Atualmente, assistimos a um aumento de número destes doentes identificados na prática clínica, mas acredito que os números poderão subir ainda mais à medida que formos estando mais atentos. Coloca-se mesmo a questão de se será tão rara quanto parecia ainda há uns 5 anos atrás. Esta doença, que se esconde muitas vezes atrás de outras patologias cardíacas como estenose aórtica ou síndromas como a insuficiência cardíaca, precisa que estejamos preparados para ver para além de apenas um só problema do doente e que consigamos inclusivamente procurar na história clínica e familiar por situações que nos alertem para a sua presença.
Qual a relação entre Insuficiência Cardíaca e Miocardiopatia amiloide associada a transtirretina?
A manifestação cardiológica principal dos doentes com esta patologia é a insuficiência cardíaca. Ou dito de outra forma, é por essa causa que o doente se apresenta muitas vezes à consulta na cardiologia. Isso e uma hipertrofia cardíaca. Dizem alguns estudos que a miocardiopatia amiloide associada a transtirretina poderá representar cerca de 13% das causas etiológicas da insuficiência cardíaca, nomeadamente nas situações de fração de ejeção preservada. E sabemos bem qual a dimensão da insuficiência cardíaca em Portugal, na Europa e no Mundo, que é verdadeiramente um problema de saúde pública. Importa por isso, cada vez mais, investigarmos nos nossos doentes a causa etiológica destes casos de IC, para podermos agir sobre a origem da doença e não apenas sobre as suas manifestações.
E a relação entre a Miocardiopatia amiloide associada a transtirretina e a outra doença que os portugueses poderão conhecer melhor, também relacionada com transtirretina, a doença dos pezinhos ou paramiloidose?
Ambas as doenças têm na sua génese a transtirretina. Que é uma proteína nativa e que é produzida naturalmente no nosso organismo; tem funções de transporte e é um precursor de outras proteínas importantes na nossa fisiologia, estando ainda a ser investigado se terá também outras propriedades, nomeadamente de proteção contra doenças neurodegenerativas. Dito isto, importa clarificar que as patologias que derivam de problemas com a transtirretina podem ter duas origens:
1) hereditária, quando uma mutação no gene que a codifica provoca uma instabilidade na sua conformação normal e, posteriormente, a sua deposição anormal sob a forma de fibrilhas insolúveis de transtirretina em tecidos onde não se deviaNefrologia
depositar. Conhecemos hoje mais de 100 mutações neste gene e que provocam uma variabilidade enorme nas apresentações da doença que delas advém.
2) wild type ou selvagem, em que não há mutação, mas a idade (e possivelmente outros fatores ligados ao processo inflamatório) provocam o mesmo depósito anormal em fibrilhas em vários tipos de tecidos no organismo.
A diferença entre as duas formas da doença mencionadas na pergunta está no tipo de tecidos onde ocorrem os depósitos e nos danos provocados nestes tecidos que derivam da infiltração das fibrilhas. Se os danos forem maioritariamente em tecidos neurológicos, estamos a falar de Polineuropatia, mas se o órgão mais atingido for o coração estamos então a falar de Miocardiopatia. Para ser mais claro, estes problemas ocorrem num espectro contínuo, havendo fenótipos mais extremados como os dois que menciona, mas também fenótipos mistos em que o doente manifesta simultaneamente problemas neurológicos e cardíacos. Como disse anteriormente, esta é uma doença multissistémica, em que mais do que um órgão ou tecido é afetado, e estes doentes têm problemas a vários níveis mesmo nas variantes mais marcadamente neurológicas ou cardíacas, daí a necessidade de uma avaliação holística tanto do estado atual como do histórico clínico pois nem todos os problemas surgem, progridem ou se agudizam ao mesmo tempo.
Na sua opinião, quando falamos desta doença (ATTR-CM) estamos perante um iceberg, em que apenas vemos uma pequena parte da sua real dimensão?
Penso que a imagem do iceberg é feliz porque estaremos a ver apenas a parte acima da linha de água e compete-nos mergulhar a fundo neste problema para conseguirmos ver a totalidade da situação epidemiológica da ATTR-CM, tanto na sua vertente hereditária, mais rara de facto, como na wild-type, muitíssimo mais prevalente e preocupante, mais ainda porque é conhecido o problema de envelhecimento da nossa população.
Do ponto de vista do doente, a que deve este estar atento no caso de suspeita de ATTR-CM? À sua história familiar? À sua história clínica? Destacaria algum sintoma que deva servir de alerta para procurar um aconselhamento médico?
Em primeiro lugar, é importante valorizar as pequenas, mas constantes queixas de cansaço e agravamento da capacidade de realizar esforços. Não deixar passar demasiado tempo (meses) sem consultar um médico, o seu médico de família ou dirigir-se ao centro de saúde para ser visto. Uma vez lá, é preciso terem presente a história familiar, fazer um esforço para se lembrarem se tiveram alguém na família que tenha sido afetado por problemas semelhantes ou até que tenha vindo a falecer por doença cardíaca. De igual forma, tentar perceber se houve um declínio no que conseguiam fazer sem ficarem cansados, mesmo atividades do dia a dia que foram sendo alteradas quase sem darem por isso, tanto numa autoanálise como conversando com alguém próximo, do agregado familiar por exemplo. Também no relato das queixas, mencionar tudo o que se lembram que tenham começado a sentir mesmo que pareça pouco relacionado como alterações de visão, problemas nos pulsos, diarreia e/ou obstipação, formigueiros nos membros inferiores, tonturas ao levantar-se e até mesmo terem tido a necessidade, por conselho médico, de alterações constantes na vossa medicação.
Falando agora sobre a classe médica, que especialidades considera essenciais para a suspeita, diagnóstico e seguimento destes doentes? [sugestões para confirmar ou aprofundar: Medicina Geral e Familiar, Medicina Interna, Cardiologia, Genética, Gastroenterologia, Oftamologia, Neurologia, outras?]
Há uma panóplia de sinais e sintomas de alerta, as chamadas red-flags, que nos devem alertar para que algo precisa de ser investigado, principalmente quando se apresentam em conjunto com queixas cardíacas (e/ou neurológicas). Tanto no caso em que ouvimos as queixas do doente, como perguntando ativamente se sofrem delas ou se estão no seu historial clínico (e aqui relembro, por exemplo, que a síndrome do túnel cárpico, principalmente se bilateral, precede as manifestações cardíacas em 5 a 7 anos). Sinal de Popeye, macroglossia, glaucoma, estenose lombar, perdas de peso não intencionais. Procurem evidências nos ECG e no ecocardiograma de que algo não está bem (como padrões de pseudo enfarte, discrepâncias entre condução e espessura, hipotensão em casos anteriormente hipertensivos, padrões ecográficos específicos como o “apical sparing” ou padrão granular brilhante ou mesmo derrame pericárdico) e em caso de dúvida referenciem para a cardiologia.
E que mensagens deixaria para esses seus colegas de outras especialidades, como forma de chamar a atenção para este problema?
Estejam alerta para o inesperado e para o inexplicável. Olhem para o doente como um todo. Vão começar a encontrar muito mais doentes do que esperavam e a maior parte estava mesmo em frente aos nossos olhos. Pode parecer que raro é sempre sinónimo de pouco frequente ou até de muito óbvio, pela diferença do que é comum, mas há muito mais para descobrir do que o que já foi descoberto nesta doença em particular e isso deve estimular o nosso “sexto sentido clínico”. Para além do que já mencionei e da necessidade de referenciação para a cardiologia, tanto vinda dos cuidados primários como intra-hospitalar, se todos os intervenientes estiverem mais alerta para esta patologia, melhor poderemos identificar de forma precoce estes doentes.
O que pode a cardiologia em particular fazer para melhorar os tempos de diagnóstico e a qualidade de vida destes doentes? Quão importante é neste caso diagnosticar e agir cedo?
Esta é uma doença potencialmente fatal e progressiva. Alguns estudos apontam para atraso no diagnóstico de uma doença rara na ordem dos 7, 8 anos. Ora, neste caso estamos a falar de uma sobrevivência desde o aparecimento dos primeiros sinais e sintomas na ordem dos 3 ou 4 anos. E nem estou a falar da amiloidose de cadeias leves, que se apresenta praticamente da mesma forma e que tem uma sobrevida média após diagnóstico sem tratamento de cerca de 6 meses. É preciso suspeitar que algo está errado e dirigir os nossos esforços para aprofundar a investigação da causa, principalmente em indivíduos do sexo masculino com mais do que 65 anos, ou 70 anos se do sexo feminino, que tenham hipertrofia cardíaca (por exemplo, com espessuras das paredes ventriculares iguais ou superiores a 12-14 mm) e insuficiência cardíaca ou alguns dos problemas que mencionei anteriormente (red flags). E para os doentes que já seguimos, revejam os vossos casos de cardiopatia hipertensiva, de insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada ainda sem causa etiológica determinada, o mesmo para as miocardiopatias hipertróficas e estenoses aórticas ou doentes sujeitos a TAVI. A doença não para de evoluir e por isso nós também não devemos parar de investir no diagnóstico precoce destes doentes.
Há alguma margem para ter esperança nesta doença?
Felizmente sim. Tanto pela capacidade atual de diagnóstico por vias não invasivas ou imagiológicas (com destaque para a cintigrafia óssea com radiomarcador e despiste serológico de AL), que representam um menor atraso no diagnóstico, pois são técnicas bastante acessíveis que podem ser realizadas um pouco por todo o país (ao contrário das biópsias que requerem centros especializados para serem feitas em maior segurança). Isso irá ajudar a diagnosticar estes doentes cada vez mais cedo e agir sobre a progressão da doença antes que o dano provocado seja grave demais. Por outro lado, sabemos hoje otimizar melhor as terapêuticas de insuficiência cardíaca nestes doentes e temos já uma opção terapêutica específica aprovada pela EMA (Agência Europeia do Medicamento) para a sua causa etiológica, a miocardiopatia amiloide por transtirretina, esperando que mais alternativas concluam nos próximos anos os seus ensaios clínicos para sabermos se serão também válidas para tratar estes doentes.
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