É possível tratar a incontinência urinária mesmo nas idades mais avançadas, garante José Manuel Palma dos Reis, diretor do Serviço de Urologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Quando as abordagens convencionais falham, novas técnicas minimamente invasivas conseguem devolver a qualidade de vida aos doentes.
HealthNews – Em Portugal, segundo a Associação Portuguesa de Urologia, estima-se a existência de 600 mil pessoas com Incontinência Urinária (IU) nas várias faixas etárias. Porque motivo afeta mais o sexo feminino?
José Manuel Palma dos Reis – A incontinência urinária é muito mais comum no sexo feminino por razões anatómicas e fisiológicas. Na mulher, toda a estrutura está programada para a ocorrência do parto e existem muitos mais problemas de suporte do pavimento pélvico.
A segunda grande razão diz respeito ao próprio aparelho esfíncteriano. Enquanto que, no homem, a anatomia da uretra está bem definida, na mulher é muito curta e o esfíncter não é tão objetivável como no sexo masculino.
Centrando-nos na mulher, os dois grandes tipos de IU – incontinência urinária de urgência e incontinência urinária de esforço – aumentam com a idade.
Na incontinência urinária de esforço existe um suporte deficiente do pavimento pélvico e uma hipermobilidade da uretra durante o esforço, com perdas de urina.
Na incontinência urinária de urgência, ocorrem contrações da bexiga quando não deveriam acontecer. Esta é “uma das faces” da síndrome de bexiga hiperativa, com a ocorrência das denominadas “contrações não inibidas”. Se a contração for tão forte que ultrapassa a resistência do esfíncter, a mulher terá um síndroma de bexiga hiperativa molhado; se a resistência esfincteriana for suficiente, terá uma síndrome de bexiga hiperativa seca, com uma série de queixas mas sem incontinência.
A incontinência urinária de esforço tem alguma relação com a multiparidade e partos mais difíceis, embora não tanta como chegámos a pensar. Sofre também um efeito muito deletério com a menopausa, quando se verifica maior atrofia vaginal e perda de suporte do pavimento pélvico.
Com alguma frequência, a incontinência urinária de urgência também aumenta abruptamente depois da menopausa mas, de uma forma geral, existe em todos os grupos etários, incluindo pessoas muito jovens.
Quais são as consequências a nível emocional, social e sexual?
Há pessoas que deixam de sair com receio de ter episódios de incontinência ou diminuem o seu grau de convívio social.
No domínio sexual, as consequências são enormes. É muito frequente, particularmente nos casos de incontinência urinária de esforço grave, perda de urina durante as relações sexuais. Claro que isso tem um efeito deletério na qualidade de vida absolutamente brutal.
Há tratamento para os diferentes tipos de incontinência urinária?
Certamente! Regra geral, a correção da incontinência urinária de esforço é cirúrgica. Consiste em colocar uma fita que suporta a uretra e corrige a hipermobilidade durante o esforço. O procedimento é muito simples, dura cerca de 15 minutos e, por vezes, é realizado em regime de ambulatório, sem necessidade de internamento.
Na incontinência urinária de urgência, o tratamento é normalmente farmacológico e visa contrariar as contrações da bexiga que surgem quando não deveriam acontecer. Até há relativamente pouco tempo havia vários medicamentos mas somente uma via terapêutica, que consistia na tentativa de abolição do reflexo colinérgico. Atualmente, também conseguimos promover o relaxamento ativo da bexiga com os denominados “beta3 miméticos”.
E no caso de as terapêuticas convencionais falharem?
No caso particular da incontinência urinária de urgência, existem outras técnicas, como induzir uma paralisia parcial da bexiga, injetando diretamente toxina botulínica no músculo da bexiga, ou a neuromodulação das raízes sagradas posteriores. Muitas vezes, esta técnica consegue controlar casos que não respondem à terapêutica farmacológica convencional.
Mas ressalvo que, felizmente, a maioria dos casos de incontinência de urgência se resolve com a terapêutica farmacológica médica normal.
Neste, como em muitos outros domínios, as queixas surgem, em primeiro lugar, nos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Como vê a atuação dos médicos de família nesta área?
Os médicos de família são a porta de entrada no sistema e a primeira linha de tratamento destes doentes.
Nos casos típicos de incontinência urinária de urgência, os nossos colegas da Medicina Geral e Familiar devem fazer uma primeira tentativa de controle com as terapêuticas farmacológicas de primeira linha e ver como o doente responde.
É também importante pedir uma ecografia vesical para confirmar que não existe mais nada que possa justificar este quadro porque, por vezes, há situações mais graves que podem manifestar-se desta forma. Os tumores ou os cálculos da bexiga são muito menos prováveis mas devem ser descartados de antemão.
Na incontinência urinária de esforço grave, obviamente não há grande coisa a fazer a nível dos CSP. A solução é cirúrgica.
Já a incontinência de urgência, como referi antes, pode e deve ser abordada primariamente em Medicina Geral e Familiar com as terapêuticas farmacológicas disponíveis.
A noctúria também é um problema muito comum. Qual é a melhor abordagem?
A noctúria é, de facto, muito frequente, mas manifesta-se de forma mais equitativa em ambos os sexos. Até talvez seja mais valorizada nos homens. Por vezes, o doente confunde-a com patologia da próstata quando, na realidade, o que tem é uma produção muito aumentada de urina durante a noite… ou uma produção diminuída durante o dia. Como costumo explicar aos meus doentes, a quantidade de urina total é mais ou menos estável e está relacionada com a ingestão de líquidos de cada pessoa, mas a distribuição da diurese pode variar ao longo do dia.
É relativamente comum em doentes com patologia cardíaca, nomeadamente com algum grau de insuficiência cardíaca e, nesses casos, o tratamento visa, primariamente, corrigir a doença de base.
Na ausência de patologia cardíaca significativa, as poliúrias noturnas geralmente estão relacionadas com algum défice da hormona antidiurética, que é relativamente comum e aumenta com a idade.
Durante a noite, deveria haver maior produção dessa hormona, para permitir que a pessoa durma sossegada, sem necessidade de se levantar. Mas, hoje em dia, consegue-se controlar muito bem esse défice, com desmopressina oral. Regra geral, uma dose relativamente baixa desta hormona antidiurética é suficiente para contrariar a noctúria e devolver a qualidade de vida ao doente.
Para o diagnóstico correto da noctúria existe uma ferramenta muito simples mas que é frequentemente esquecida: o diário miccional.
É suficiente a sua forma mais simples, que é apenas o registo da frequência e do volume das micções, que já permite o diagnóstico diferencial, por exemplo, de noctúria e de patologia prostática no sexo masculino.
Em que situações se justifica a referenciação da MGF para Urologia?
Deve referenciar os casos potencialmente cirúrgicos. Em princípio, todas as incontinências de esforço significativas são para referenciar, bem como as incontinências de urgência refratárias, quando existam dúvidas relativamente à sua etiologia ou má resposta ao tratamento.
Por último, se o médico de família tiver objetivado que o doente tem, de facto, noctúria, pode e deve medicar com desmopressina que, hoje em dia, tem formulações muito fáceis de utilizar.
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