Ricardo Pereira e Silva: As disfunções do pavimento pélvico “ainda são um pouco tabu” em Portugal

06/25/2021
As disfunções do pavimento pélvico “ainda são um pouco tabu” em Portugal, e “há um longo trabalho para fazer em termos de consciencialização da população”, disse ao HealthNews o Dr. Ricardo Pereira e Silva, urologista no Hospital de Santa Maria

Os tratamentos não chegam a todos porque muitos sofrem em silêncio, adaptando a sua vida aos sintomas urinários, defecatórios ou sexuais que os afetam – um erro, segundo Ricardo Pereira e Silva: “[O doente] deve procurar um diagnóstico e um tratamento adequados e atempados, de forma a restaurar a sua qualidade de vida basal”. A Associação Nacional de Continência e Disfunção Pélvica, lançada nesta Semana Mundial da Continência, pode dar “uma resposta mais direta e uma sensação de segurança” a estes doentes, considera o médico.

HealthNews (HN)- O que são as disfunções do pavimento pélvico?
Ricardo Pereira e Silva (RPS)- Disfunções do pavimento pélvico é um termo utilizado para descrever um conjunto variado de situações em que ocorre um mau funcionamento dos músculos do pavimento pélvico, e, com isso, existe depois um mau funcionamento do aparelho urinário no geral ou das outras funções da cavidade pélvica – da função sexual, da função defecatória. Estão todas interrelacionadas porque são todas funções da cavidade pélvica. Manifestam-se sob a forma de diferentes tipos de sintomas, conforme o compartimento dessa mesma cavidade pélvica que está afetado. Pode estar afetado um, dois ou três desses compartimentos. Quando existem sintomas urinários, eles podem-se manifestar sob a forma de problemas no armazenamento de urina – necessidade frequente de ir à casa de banho, necessidade súbita de ir à casa de banho, incontinência urinária, necessidade de acordar durante a noite para urinar – ou no esvaziamento – dificuldade na micção, micção difícil, lenta ou o esvaziamento incompleto da bexiga. As disfunções do pavimento pélvico manifestam-se também sob a forma de disfunção defecatória, ou seja, problemas da defecação, nomeadamente obstipação ou incontinência anal, portanto, incontinência para fezes ou gases. Depois, no compartimento médio, estamos a falar da função sexual, em que muitas vezes as disfunções do pavimento pélvico podem estar associadas a dores com as relações sexuais, o que também tem um grande impacto na qualidade de vida do doente. Portanto, estas disfunções do pavimento pélvico podem manifestar-se com sintomas destes três tipos: sintomas urinários, sintomas defecatórios ou sintomas sexuais, em quantidades variáveis, de acordo com a situação individual.

HN- Que patologias mais frequentemente provocam disfunções do pavimento pélvico?
RPS- Em homens e mulheres temos logo patologias e causas diferentes. Podemos dividir em dois grandes tipos: aquelas que ocorrem em doentes neurológicos, porque o sistema nervoso é essencial para o controlo dos músculos do pavimento pélvico, e existe uma multiplicidade de doenças neurológicas que podem estar associadas a disfunções do pavimento pélvico; depois, nos doentes neurologicamente íntegros, existem, no caso das doentes do sexo feminino, fatores que estão relacionados com o envelhecimento, com o status pós-menopausa, com os antecedentes obstétricos, portanto, o facto de se ter tido filhos, principalmente por via vaginal e quando são fetos com elevado peso à nascença, ou quando são partos instrumentados e doentes que já tiveram vários partos. Tudo isso são fatores de risco grandes para disfunções do pavimento pélvico. Em relação aos homens, o envelhecimento também tem um papel, ou seja, o envelhecimento acaba por ser um fator de risco transversal aos dois sexos. Nos homens, por vezes, existe iatrogenia, ou seja, as disfunções dos músculos do pavimento pélvico podem ser secundárias a intervenções, e em parte na mulher também. Cirurgia oncológica radical a nível pélvico, por exemplo, pode conduzir a disfunções do pavimento pélvico secundárias. Estas são as principais causas e doenças associadas.

HN- Qual o impacto das disfunções do pavimento pélvico na vida dos doentes?
RPS- Naturalmente que isto vai depender dos sintomas e das consequências dessas disfunções. Há doentes que, por terem um mau esvaziamento da bexiga, podem ter infeções urinárias frequentes, que é uma das principais queixas, porque é francamente incomodativo e tem um grande impacto na vida dos doentes, e uma das principais causas de consulta de urologia. Essa é uma das formas pelas quais se pode fazer sentir o impacto. As outras normalmente têm a ver com aquilo que mais prejudica a vida dos doentes, dependendo da sua fase da vida e daquilo que o doente mais valoriza. A incontinência, sem sombra de dúvidas, causa grande transtorno aos doentes, seja incontinência urinária, seja incontinência anal, que muitas vezes é pior. Quem tem uma incontinência para fezes vai ter uma qualidade de vida inferior a quem tem uma incontinência urinária, tendencialmente. Naturalmente que isto pode ter um impacto devastador na vida dos doentes. Pode ser difícil o doente manter uma vida normal. O doente pode ter de utilizar métodos de contenção, sejam pensos, sejam fraldas, para conter a urina ou as fezes. É uma situação que é absolutamente devastadora. Outra consequência que pode estar associada a disfunções do pavimento pélvico, nomeadamente com o mau esvaziamento da bexiga, é a noctúria, ou seja, a necessidade de acordar durante a noite para urinar. Esse é outro dos sintomas que tem um grande impacto na qualidade de vida dos doentes, porque o doente que tem de acordar, principalmente quando é várias vezes, durante a noite para urinar, não vai ter um sono reparador, portanto vai ter uma pior qualidade de vida. Em relação à parte sexual, existe uma percentagem muito elevada de doentes que têm dores com as relações sexuais. Alguns acabam mesmo, na ausência de uma resposta ou de um tratamento adequado, por cessar a atividade sexual, com as consequências que isso traz individualmente e para a vida dos casais.

HN- Qual a prevalência em Portugal? Há estimativa dos casos não reportados?
RPS- Temos de ter em conta a diversidade dos quadros, que vão desde quadros ligeiros a quadros mais graves, o subdiagnóstico e a forma como as coisas são feitas em Portugal – ou seja, em Portugal, não existe uma cultura de abordagem preventiva das disfunções do pavimento pélvico. Noutros países, as mulheres, depois de um parto instrumentado, têm indicação formal, pelos cuidados de saúde, de realizar reabilitação de pavimento pélvico, e a esmagadora maioria das doentes realiza essa mesma reabilitação. Em Portugal, como isso não existe e estas situação são muito estigmatizantes ainda – as pessoas têm muita dificuldade em falar sobre isso -, eu diria que o subdiagnóstico é tal, que não é possível fazer uma estimativa. Mas eu diria que é muito elevado. Se nós considerarmos disfunções minor, perto de metade da população é capaz de ter uma disfunção do pavimento pélvico. Mas não existem números, nem acho que seja viável, pelo menos por enquanto, fazer um estudo que nos dê esse número. Existem números para incontinência, que é uma coisa mais “fácil” de objetivar por si só, e estamos a falar de números que chegam aos 20% ou mais de 20% da população.

HN- Quais as razões que levam as pessoas a sofrer em silêncio e não recorrer ao médico?
RPS- São assuntos que ainda são um pouco tabu. Acho que existe algum estigma associado. Eu costumo dizer que existem doenças que são mais fáceis de verbalizar e de contar ou desabafar com amigos e familiares. É mais fácil uma pessoa desabafar que tem um problema no joelho e que tem mobilidade reduzida por causa disso e que se calhar vai necessitar de uma cirurgia do que uma pessoa dizer a um amigo ou a um familiar que perde urina ou, pior, que perde fezes, ou que tem dores com as relações sexuais. Eu acho que isto tem muito de cultural ainda, infelizmente, porque cada vez se advoga mais a qualidade de vida. Em muitos aspetos, existe tendência para as pessoas recorrerem a formas de otimizar o seu bem-estar, mindfulness e outras linhas de tratamento não médico, de rejuvenescimento. Mas acho que isto ainda fica um bocadinho para trás. Acho que há um longo trabalho para fazer em termos de consciencialização da população para conseguirmos chegar a mais pessoas que têm estes problemas, de uma forma eficaz, no diagnóstico, porque sem diagnóstico não existe depois tratamento. Porque tratamentos eficazes existem, infelizmente não chegam é a toda a gente que necessita deles.

HN- Que tipo de acompanhamento pode ser feito? Que tratamentos existem?
RPS- Depende da idade, do sexo e da disfunção de base e suas manifestações. Acima de tudo, as disfunções do pavimento pélvico devem ser abordadas de acordo com as necessidades do doente. O que eu diria que acaba por ser transversal a todas as manifestações das disfunções do pavimento pélvico em termos de tratamento é a reabilitação do pavimento pélvico, em termos de tratamento ativo. Ou seja, a fisioterapia pélvica é aquilo que nos permite de base melhorar o funcionamento da musculatura pélvica, no sentido de diminuir as queixas dos doentes, sejam elas quais forem. Depois vai depender um bocadinho da situação individual. Existem outras formas de tratamento, prevenção e minimização dos sintomas. Deixar de fumar e a adoção de um estilo de vida saudável, com atividade física regular, acabam por ser as medidas que são transversais mais ou menos a todos os doentes. Depois vai depender muito de qual é que é a disfunção. Pode haver uma mulher com antecedentes obstétricos que tenha um cistocelo ou um retocelo, portanto bexiga, o reto ou mesmo o útero descaído. Essas doentes devem realizar reabilitação do pavimento pélvico, mas vão necessitar de um tratamento cirúrgico corretivo para colocar os órgãos pélvicos no seu lugar. Portanto, temos de individualizar. Mas eu diria que a adoção de um estilo de vida saudável, a gestão de água em quantidades adequadas, a cessação tabágica, a perda de peso e a reabilitação do pavimento pélvico são as medidas que acabam por ser transversais a todos os doentes.

HN- Que medidas devem ser tomadas para melhorar a situação destes doentes em Portugal?
RPS- Acho que se deve investir em políticas de saúde pública. Existem doenças e situações clínicas que já dispõem de algum mediatismo e de mais consciencialização, tanto da população médica como da população em geral. Posso dar alguns exemplos. A diabetes ou a hipercolesterolemia são situações que as pessoas identificam como patológicas e que sabem que têm necessidade de serem tratadas, para redução, por exemplo, do risco cardiovascular e das consequências dessas mesmas doenças. Neste caso [das disfunções do pavimento pélvico], as pessoas não pensam muito nisso e tendem menos a procurar ajuda, mesmo sendo situações que causam um impacto significativo na qualidade de vida. Portanto, eu acho que falha um bocadinho uma política destas mais abrangente, como eu enunciava há pouco, que é, por exemplo, reabilitação do pavimento pélvico após parto instrumentado ser uma medida instituída, e a população saber que é suposto isso ser feito, ou, perante os primeiros sinais de disfunções do pavimento pélvico, o doente ser referenciado, ser abordado por uma equipa multidisciplinar, com uma abordagem nutricional, eventualmente com o apoio psicológico, se for caso disso, porque há doentes que ficam absolutamente devastados. Eu acho que tudo isso parte da consciencialização e até de uma expansão e de uma otimização de toda a rede de prestação de cuidados. Se todas as mulheres que tiveram um parto instrumentado fizessem reabilitação do pavimento pélvico, provavelmente não tínhamos fisioterapeutas, nem tínhamos nutricionistas, nem tínhamos pessoas para acompanhar. Acho que parte tudo da consciencialização. Se houver mais pessoas a identificar isto como uma situação essencial para a qualidade de vida, naturalmente que vai-se seguir também um reforço da rede de prestação de cuidados.

HN- Quais os objetivos da Associação Nacional de Continência e Disfunção Pélvica?
RPS- A maior parte dos meus doentes neurológicos, para o seu diagnóstico, tem a sua respetiva associação de doentes, porque são doenças que criam incapacidades, que lançam muitos desafios na vida quotidiana das pessoas afetadas, e estas pessoas veem nas associações uma possibilidade de interação com pessoas que têm os mesmos diagnósticos, veem um conjunto de soluções que são apresentadas e discutidas, e o tratamento e o diagnóstico são incentivados e otimizados pela troca de experiências, tanto entre doentes como entre profissionais envolvidos no tratamento. Tudo isso potencia um diagnóstico correto, atempado, a instituição de medidas preventivas atempadamente e a otimização do tratamento. Isto já existe para muitas doenças e muitas situações. Não existia uma associação dedicada às incontinências, e isso reflete alguma falta de consciencialização da opinião pública, alguma falta se calhar de mediatismo, alguns tabus que é preciso quebrar. Mas acho que uma associação de doentes poderá ser um pilar essencial para conseguirmos atingir o objetivo de as pessoas compreenderam que estes problemas existem, que estes problemas devem ser falados, não devem ser vividos em silêncio, nem a pessoa deve adaptar a sua vida aos sintomas que vão surgindo e agravando, mas deve procurar um diagnóstico e um tratamento adequados e atempados, de forma a restaurar a sua qualidade de vida basal (antes do desenvolvimento dos sintomas).

HN- Que projetos pretende desenvolver esta associação?
RPS- Sem sombra de dúvidas que um dos principais objetivos é providenciar oportunidades adequadas para formação do público em geral e das pessoas envolvidas no diagnóstico e tratamento. Muitas vezes, e falo agora dos profissionais, são pessoas de especialidades envolvidas no tratamento destas situações, mas uma percentagem significativa poderá não dispor do envolvimento necessário junto das populações. Portanto, uma associação de doentes vai criar visibilidade e motivar os profissionais a otimizarem os procedimentos necessários para levar a cabo o tratamento. Serão feitas ações de formação para doentes, através dos seus representantes, campanhas de sensibilização e, naturalmente, a associação irá fornecer a possibilidade de criar fóruns de discussão e, eventualmente, otimizar redes de referenciação, porque nesta área o trabalho é multidisciplinar, portanto é muito importante uma boa referenciação aos profissionais mais indicados para o tratamento de cada uma das situações. O facto de haver uma associação de doentes também vai permitir dar alguma orientação aos doentes que possam não saber como proceder perante o seu problema, para além da sensibilização em geral.

HN- Quer deixar alguma nota final?
RPS- As disfunções do pavimento pélvico, que podem ter um impacto devastador na vida das pessoas, podem e devem ser abordadas e tratadas. É necessário desmistificar algumas coisas, falar sobre os assuntos, e julgo que assim vamos conseguir chegar a muito mais pessoas que atualmente sofrem em silêncio, que se calhar conseguirão ter através de uma associação uma resposta mais direta e uma sensação de segurança, por saberem que existe alguém para cuidar do seu problema.

Entrevista de Rita Antunes/MM

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