“Cuidarmos de nós, dos outros e do todo, implica uma atitude de coerência em todos os contextos, em casa, no trabalho, no meio social, nas políticas públicas e privadas”, refere Teresa Gomes Mota, médica cardiologista e escritora. “Acredito que a colocação da saúde (das pessoas e da natureza), no centro de todas as políticas, levada de uma forma séria (e não apenas para gerir aparências), tem um poderoso efeito”.
HealthNews (HN) – No mundo, as doenças cardiovasculares são as que mais matam e estão solidamente relacionadas com diversos fatores de risco. Qual é o papel e lugar da HTA neste ranking, em que inclui também, por exemplo, o tabagismo, diabetes, excesso de peso e obesidade?
Teresa Gomes Mota (TGM) – A hipertensão arterial ocupa o primeiro lugar, é a principal causa de mortalidade no mundo, causando mais de 10 milhões de mortes anualmente. O segundo lugar é ocupado pelo tabagismo, o terceiro pela diabetes e pré diabetes, o quarto pela poluição do ar, seguindo-se a obesidade em quinto lugar[1].
HN – Num artigo publicado no “Observador” assinalava que a saúde dos portugueses atingiu um estado lamentável e a culpa não é da pandemia, nem do sistema de saúde. A mudança dos padrões de consumo e do estilo de vida é a solução possível?
TGM – Não temos outra opção, se quisermos preservar os ecossistemas que nos são indispensáveis à sobrevivência como espécie humana, da forma como a conhecemos. De uma forma simplificada, mas muito útil para nos ajudar nas decisões que tomamos a toda a hora, o que prejudica a saúde do planeta, direta ou indiretamente, acaba por prejudicar a nossa saúde.
Por exemplo, aplica-se no que se refere à poluição atmosférica, hoje o quarto fator de risco de morte no mundo. Como podemos ser saudáveis respirando um ar poluído? Mesmo não notando os efeitos imediatos, os efeitos perniciosos, não só a nível respiratório, mas também a nível cardiovascular, entre outros, acabam por se fazer sentir. A solução, passa, entre outras medidas, pela redução da utilização de combustíveis fósseis. Reduzir o uso de veículos motorizados, com a sua substituição por bicicleta, ou caminhada, tem um claro efeito positivo no combate ao sedentarismo e às suas consequências nefastas para a saúde.
A criação de animais para consumo humano é também uma fonte importante de emissão de gases com efeito de estufa e contribuem para alterações climáticas, que irão colocar em causa a sobrevivência de muitas espécies, inclusivamente o homem. Na agricultura, a prática de monoculturas intensivas, que só são possíveis com utilização de pesticidas e agroquímicos em grandes quantidades, contaminam os alimentos que comemos, mas passam também para o solo e para os aquíferos, prejudicando o equilíbrio do ecossistemas e comprometendo a saúde das gerações futuras.
Em contrapartida, uma alimentação de base vegetal, com produtos de produção local, biológicos, consumidos na época própria, evita estes desequilíbrios ambientais e é também muito benéfica para saúde humana de uma forma direta.
HN – É autora de vários livros, designadamente “Emagrecer. Eu Consigo!”, neste caso em parceria com o Chef Hernâni Hermida. A dieta mediterrânica com baixa carga glicémica é o caminho mais indicado?
TGM – A dieta mediterrânica está muito bem estudada cientificamente e é considerada um dos padrões alimentares mais saudáveis do mundo. É uma dieta rica em hortícolas e frutas da estação, usando como principal gordura o azeite, e muito pequenas quantidades de laticínios, peixe ou carne. Consideram-se também característicos os métodos de confeção dos alimentos, com cozidos e estufados, o consumo de pequenas quantidades de vinho, e a convivialidade nas refeições. Há uma clara demarcação entre as refeições nos dias normais, que são frugais, e os dias de festa, onde a abundância de alimentos é praticada. Quando propus que se atentasse na redução da carga glicémica associada a este padrão alimentar, a razão é porque a industrialização veio modificar e alterar de modo negativo alguns alimentos, nomeadamente o pão. As farinhas atuais, mais ricas em glúten, muito refinadas e usadas no fabrico do pão, transformaram o produto final de tal forma, que hoje o pão pode ser desaconselhado para o consumo diário. É muito ilustrativo considerarmos que o índice glicémico do pão “branco” é equivalente ao do açúcar, ou seja, após o consumo desse tipo de pão os níveis de açúcar (glicose) no sangue equivalem ao do consumo da mesma quantidade de açúcar.
Hoje, com uma maior consciência ecológica e da forte interligação entre a saúde humana e a saúde do meio ambiente, considero as dietas de base vegetal mais indicadas. Mas a dieta mediterrânica é uma boa aproximação!
HN – Qual é o impacto da redução de peso e do exercício físico na hipertensão?
TGM – Há medidas com extraordinário impacto na regulação da tensão arterial, como a redução do peso, a redução do consumo de sal e a prática regular de atividade física. Mas vivemos numa sociedade em que estamos habituados a procurar as soluções nos medicamentos em vez de atuar na raiz dos problemas. A elevação da tensão arterial deve constituir um forte aviso de que alguma coisa não vai bem no nosso corpo. Se atuarmos nas causas podemos evitar a progressão da doença e as suas complicações. Há uma constatação científica de que a hipertensão secundária é rara e que maior parte das situações não se encontra uma doença na sua base, pelo que se considera idiopática. Também é frequentemente dito que a hipertensão é uma doença crónica, o que leva as pessoas a pensar que não tem cura, logo a aceitar a toma de medicamentos que são geralmente muito eficazes, e, infelizmente a desistir das mudanças de estilo de vida. Como médica, já assisti a muitas destas hipertensões reverterem com o emagrecimento, com a mudança da alimentação, com a retirada de medicamentos concomitantes nomeadamente anticonceptivos orais e anti-inflamatórios e com a prática regular de exercício físico. Mas mesmo quando a reversão não é completa, estas medidas além de beneficiarem a saúde geral, permitem que a hipertensão seja controlada com uma dose bem menor de medicamentos.
HN – Considera que a sociedade portuguesa está demasiado dependente dos medicamentos?
TGM – Considero que de uma forma geral, em Portugal e na maioria dos países do mundo industrializado, há um excesso de consumo de medicamentos, com consequências muito graves. Nos Estados Unidos, por exemplo já foi considerada como a terceira causa de morte. A polimedicação, que é muito frequente nas pessoas mais idosas e frágeis, acarreta um grande risco de interações medicamentosas, que estarão na origem de muitas destas mortes. Todos os medicamentos e intervenções médicas comportam riscos, pelo que deverão ser reservados quando as medidas não farmacológicas, geralmente mais seguras e de primeira linha, não são eficazes.
HN – O que fazer, na sua opinião, para reverter o panorama da elevada incidência das doenças cardiovasculares no nosso país?
TGM – Tenho trabalhado muito para esse objetivo, assim como tantos outros profissionais de saúde e organizações, mas não posso dizer que os resultados sejam satisfatórios. As pessoas vivem mais anos, mas cada vez com mais doenças crónicas, incapacidades, medicação e perda de qualidade de vida. Não me parece que o aumento da medicalização da sociedade seja uma solução, é apenas um paliativo.
A solução está a um nível mais profundo, envolvendo uma maior integração e respeito pela natureza e pelo nosso corpo. É dessa consciência, de que somos todos um, pessoas, seres vivos, planeta, da nossa condição interdependentes, que pode nascer a solução para as doenças cardiovasculares e para muitas outras doenças. Cuidarmos de nós, dos outros e do todo, implica uma atitude de coerência em todos os contextos, em casa, no trabalho, no meio social, nas políticas públicas e privadas. Acredito que a colocação da saúde (das pessoas e da natureza), no centro de todas as políticas, levada de uma forma séria (e não apenas para gerir aparências), tem um poderoso efeito.
HN – Da sua obra escrita, destacam-se os livros “Do outro lado da bata” e “O Admirável Placebo”. Qual pode ser o impacto da relação médico-doente num doente crónico, por exemplo, em que a mudança de hábitos e a adesão à terapêutica são questões fundamentais para o êxito do tratamento?
TGM – A ciência é muito poderosa a estabelecer diagnósticos, a demonstrar os mecanismos das doenças, a encontrar terapêuticas para controlo da sintomatologia e complicações. Mas não tem sido tão eficaz a encontrar o porquê das doenças. Em contrapartida, uma boa-relação médico doente, tem a capacidade de identificar e intervir nas causas, num trabalho de confiança, respeito, empatia, compaixão. A relação médico-doente é indispensável para que se possa fazer o caminho no sentido de entender os fatores que estão a condicionar determinado estado patológico e a sua cronicidade, e num significativo número de casos, só por si, leva à melhoria de certos sintomas. A dor é um caso paradigmático. A dor é um importante sinal de alerta para o consciente, de que algo não está bem no organismo. O entendimento da causa da dor, a confiança de que o médico compreende o que se está a passar e que as medidas prescritas vão atuar no problema de base, só por si tem um efeito analgésico.
Um dos maiores erros da medicina moderna é a desvalorização da consulta médica e do poder terapêutico do médico, que é colocado em evidência pelo admirável efeito placebo.
Entrevista de Adelaide Oliveira
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