HealthNews (HN) – O que é a Miocardiopatia amilóide associada a transtirretina (ATTR-CM)?
Rui Azevedo Guerreiro (RAG): A Miocardiopatia amiloide associada a transtirretina (ATTR-CM) é uma doença subdiagnosticada e potencialmente fatal. Carateriza-se pela deposição de fibrilhas amiloides, que são proteínas mal agregadas, em diversos órgãos, incluindo o coração, com aumento da espessura das paredes ventriculares, tornando-as mais rígidas e menos distensíveis, culminando no aparecimento de insuficiência cardíaca, com cansaço e diminuição da capacidade física. A doença pode estar presente em pessoas com mutação no gene da transtirretina (hATTR-CM), ou pode acontecer em pessoas sem nenhuma mutação identificada no gene da transtirretina (wtATTR-CM), sendo nesse caso mais frequente uma manifestação principalmente cardíaca, em idades mais avançadas (amiloidose wild type). Contudo, esta divisão não é estanque e corresponde a um espectro contínuo destes diferentes fenótipos, o que torna o diagnóstico desta patologia desafiante.
Nuno Cardim (NC): Exato. Acrescentaria ainda que dentro da amiloidose hereditária existem formas com polineuropatia predominante, formas com envolvimento cardíaco predominante e formas mistas. A polineuropatia amiloidótica familiar (doença dos pezinhos), tão frequente em Portugal, é uma forma com envolvimento neurológico predominante.
Em relação à amiloidose wtATTR-CM ela é frequentemente designada por amiloidose senil pois ocorre quase sempre em idosos.
HN – O que a torna tão urgente? Qual a importância de um diagnóstico precoce na ATTR-CM?
RAG: O diagnóstico precoce é muito importante pelo facto de ser uma doença progressiva e com uma sobrevida mediana desde o diagnóstico, em doentes não tratados, de cerca de 3,5 anos. O diagnóstico precoce permite o início de terapêutica para Insuficiência Cardíaca, e, mais recentemente, a instituição de tratamento específico para a ATTR-CM, que atrasa a progressão da doença.
HN – Qual é a relação entre Insuficiência Cardíaca e ATTR-CM?
RAG: A ATTR-CM é uma causa, entre outras, de Insuficiência Cardíaca; mais concretamente de Insuficiência Cardíaca de fração de ejeção (FE) preservada.
NC: Correto. No entanto, em fases mais avançadas da doença, a fração de ejeção VE também se apresenta ligeira ou moderadamente deprimida, não sendo raro encontrarmos estes doentes na nossa prática clínica (significando que nestes casos o diagnóstico precoce da doença falhou).
HN – É por esse motivo que é tão importante procurar a causa da Insuficiência Cardíaca?
RAG: A Insuficiência Cardíaca (IC) compreende uma multiplicidade de causas possíveis, com prognósticos distintos e, por vezes, terapêuticas distintas. É importante procurar a causa específica em cada doente para adequar o tratamento à causa.
NC: Detalhando um pouco mais, o tratamento da síndroma de IC com FE diminuída é completamente diferente do da IC com FE preservada; por outro lado, o tratamento específico da amiloidose cardíaca marca um turning point na história natural da doença e no prognóstico destes doentes.
HN – A ATTR-CM é uma doença subdiagnosticada e por vezes incorretamente diagnosticada. Na vossa opinião o que tem contribuído para esta situação?
RAG: É necessário um alto índice de suspeição para o diagnóstico da ATTR-CM pois quer clínica quer ecocardiograficamente pode ser confundida com outras causas de Insuficiência Cardíaca com fração de ejeção preservada, como por exemplo a miocardiopatia hipertensiva, secundária a hipertensão arterial, mais frequente na nossa população.
NC: E também com a miocardiopatia hipertrófica.
HN – Genericamente, o que deve levar à suspeição de ATTR-CM?
RAG: A suspeição de ATTR-CM wild type deve ocorrer quando estamos perante um doente idoso com hipertrofia ventricular esquerda e presença de Insuficiência Cardíaca associada a algumas red-flags:
– não cardíacas: síndrome do canal cárpico bilateral, polineuropatia, disautonomia, rutura espontânea do bíceps ou estenose do canal medular, entre outros;
– cardíacas: discrepância entre a espessura da parede ventricular e a voltagem do QRS no ECG, redução da deformação longitudinal global, que poupa o ápex (apical sparing), bloqueio auriculoventricular, ou aumento ligeiro da troponinémia em diferentes ocasiões, entre muitos outros sinais sugestivos.
NC: Resumindo, existem red-flags cardíacas clínicas (idoso com IC e HTA que passa a estar controlada sem tratamento, fibrilhação auricular com resposta ventricular controlada/lenta) e red-flags de exames complementares (ECG, ecocardiograma e ressonância magnética cardíaca).
HN – Quando há suspeita de ATTR-CM, quais as ferramentas de diagnóstico ao dispor das diferentes especialidades? E para a cardiologia em particular?
RAG: A história clínica cuidada permite às diferentes especialidades apurar a presença ou não de algumas das red-flags. Contudo, perante a suspeição clínica da presença de ATTR-CM considero adequada uma referenciação e encaminhamento para Consulta de Cardiologia para avaliação especializada. A Cardiologia tem ao dispor a ecocardiografia, a ressonância magnética cardíaca e a cintigrafia miocárdica com Tc99m‐DPD (ou outros radiofármacos como PYP ou HDMP) para confirmar ou excluir essa suspeita diagnóstica.
NC: Certo. Enquanto o ECG, o ecocardiograma e a ressonância fazem o diagnóstico de amiloidose cardíaca independentemente do tipo (AL ou TTR), a cintigrafia com tecnécio 99m e bifosfonatos (como o DPD) confirma que essa amiloidose é do tipo TTR, sendo, no entanto, sempre mandatório excluir amiloidose AL (amiloidose primária) por técnicas laboratoriais. Uma vez confirmada a amiloidose TTR, é necessário sempre o estudo genético, que se positivo confirma amiloidose TTR hereditária e se negativo confirma por exclusão o diagnóstico de amiloidose TTR wild type.
HN – Dentro das técnicas imagiológicas, a ECO tem um papel importante. O que destaca em termos de achados?
RAG: A ecocardiografia é um exame complementar de diagnóstico bastante completo, que permite não só avaliar a morfologia, mas também a função cardíaca. Perante um doente com ATTR-CM destaca-se a presença no ecocardiograma de hipertrofia das paredes, que frequentemente não se restringe ao ventrículo esquerdo mas está igualmente presente no ventrículo direito e no septo interauricular, a disfunção diastólica ventricular esquerda com pressões de enchimento aumentadas, a presença de padrão granular brilhante no miocárdio, e a redução da deformação longitudinal global que poupa o ápex.
NC: A ecocardiografia é um exame tão rico que os sinais de amiloidose são inúmeros: além dos descritos acima, referiria ainda a redução marcada das velocidades miocárdicas no Doppler tecidular, o espessamento valvular e a presença frequente de pequeno derrame pericárdico.
HN – Qual a importância de métodos não invasivos no diagnóstico de ATTR-CM?
RAG: O desenvolvimento e facilidade de acesso de métodos não invasivos no diagnóstico de ATTR-CM vieram revolucionar o diagnóstico desta patologia. Ainda há pouco anos estávamos dependentes da realização de biópsia miocárdica, procedimento invasivo, não isento de riscos, apenas realizado em alguns centros de Cardiologia nacionais. Quando o diagnóstico dependia da biópsia miocárdica, achávamos que a ATTR-CM era uma entidade rara. Agora começamos a perceber que é uma causa frequente de Insuficiência Cardíaca com fração de ejeção preservada nos doentes idosos, podendo ser responsável por até 13% dos casos de internamento por Insuficiência Cardíaca com fração de ejeção preservada.
NC: De acordo. Apenas uma chamada de atenção para a cintigrafia com DPD, que pode ter falsos positivos (por exemplo em alguns doentes com amiloidose primária AL) e falsos negativos (por exemplo algumas mutações específicas de amiloidose hereditária).
No que diz respeito à biópsia de gordura abdominal, ela também não é solução, pois apenas é positiva em menos de 15% dos doentes com ATTR wild type e em 60-80% dos doentes com amiloidose ATTR hereditária ou com amiloidose primária AL.
HN – Há razões para ser otimista no que diz respeito ao tratamento desta doença?
RAG: Claro que sim. Já temos atualmente disponível em Portugal, em alguns hospitais, terapêutica específica para esta doença; por outro lado, estão neste momento em curso diversos ensaios clínicos de fase III de outras moléculas bastante promissoras. Estes novos fármacos têm o potencial não só de impedir a progressão da doença, mas também de reverter inclusive a deposição amiloide ocorrida previamente ao início dessas terapêuticas, alterando drasticamente o prognóstico desta doença.
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