“Relato de um sobrevivente”, que será apresentado hoje, é simultaneamente um diário que cobre dois meses, entre janeiro e março deste ano, – da suspeita de contágio ao regresso a casa – e uma defesa do Serviço Nacional de Saúde e da importância de contar com o apoio da família numa situação em que se está praticamente isolado do mundo.
O psiquiatra de 74 anos, autor de livros como “Ninguém morre sozinho” e “A Razão dos avós”, salienta que é também uma demonstração da necessidade de usar todas as forças que cada um tem, às vezes sem saber como: “às vezes apetece-nos desistir, mas temos que fazer uso dessa capacidade interna para superar a doença, porque há momentos de esperança e momentos de grande desânimo, sobretudo porque o progresso é muito lento”, afirma em entrevista à agência Lusa.
Daniel Sampaio desconfiou pela primeira vez que teria sido infetado com o SARS-CoV-2 a 17 de janeiro. Oito dias depois, a sua mulher, Maria José, é internada. A 28 de janeiro, Daniel Sampaio é também internado nos cuidados intensivos no hospital de Santa Maria (Lisboa) e, pela primeira vez, pensa a sério que pode morrer.
Embora haja desde o início da pandemia uma torrente de informação sobre cuidados médicos, tratamentos e vacinação, “há muito poucos relatos de doentes que viveram e sofreram” a doença, nota, considerando que “a intimidade dos doentes é muito pouco referida e é fundamental para perceber que é uma doença grave e que as pessoas se sentem muito desamparadas.
“É preciso dizer que as pessoas não se conseguem mexer, os músculos são afetados pela doença e a pessoa, como eu digo no livro, nem sequer consegue fugir, há uma imobilidade total na fase aguda da doença e uma sensação de mal estar terrível”, relata.
Numa altura em que nas notícias se falava de hospitais cheios de doentes internados com Covid-19 e de uma situação de colapso dos serviços de saúde, Daniel Sampaio recorda que, no interior da unidade em que estava internado, os doentes se sentiam “muito apoiados pela equipa médica”.
“Embora se percebesse que os médicos, enfermeiros e auxiliares tinham muito que fazer, as equipas funcionavam muito bem, e, portanto, os médicos multiplicavam-se em atividades, estavam lá muitas horas, e os enfermeiros permanentemente. Nunca se ouvia médicos e enfermeiros a conversar, havia uma grande pressão”, salienta.
A ressalva tem a ver com “as condições logísticas” como o espaço, que “é muito reduzido”.
Depois do coma induzido, Daniel Sampaio acordou para um estado de “confusão mental” em que não sabia se estava acordado ou a dormir.
“Achava que havia gatos na enfermaria dos cuidados intensivos, trocava os nomes dos médicos…a pessoa está muito confusa durante um período, mas recupera a consciência pouco a pouco”.
Daniel Sampaio voltou do coma para um estado em que a única forma de contactar com a família era uma “chamada vídeo” que os profissionais proporcionavam, referindo que “a pessoa sente-se muito isolada” até sair dos cuidados intensivos para uma enfermaria normal, em que já podia usar o telemóvel: “há um conforto muito grande em podermos comunicar com os nossos amigos e famílias e é um suporte fundamental para podermos sobreviver”.
Daniel Sampaio aponta como “o mais penoso” do estado em que a Covid-19 grave deixa os doentes o facto de “a pessoa não se poder mexer nem aguentar-se de pé, não poder usar a casa de banho, a experiência de imobilidade que esta doença provoca é de facto difícil”.
“É preciso dar uma mensagem de esperança, de superação. Se formos fortes psicologicamente a apoiados pela família, conseguimos sobreviver, mas é preciso dizer que esta é uma doença muito grave, apesar de estarmos num período muito melhor que em janeiro, continua a haver pessoas infetadas e a própria vacinação não impede o contágio”, mas traz benefícios até para combater o medo, salienta.
“Esta doença tem grande repercussão na saúde mental. Como psiquiatra, vejo muitos casos de ansiedade e depressão provocados por esta doença, pelo medo do vírus. Quando há menos casos e menos internamentos, essa situação melhora”, refere.
Ao assistir a manifestações de pessoas que se põem em causa e se opõem à vacinação, Daniel Sampaio considera que é preciso “passar a mensagem de que, ao contrário do que se disse no início, este vírus não é nada bonzinho, é um vírus terrível e temos que o combater com todas as formas conhecidas”.
“As vacinas foram muito estudadas, muito experimentadas e administradas aos milhões no mundo inteiro. Os efeitos adversos são muito pequenos em relação ao número de administrações e a vacina protege sobretudo em relação à doença grave e à morte. Se estivesse vacinado, não teria tido uma doença tão grave”, salienta, defendendo que é preciso “ir junto dessas pessoas [que se manifestam contra a vacinação] e chamá-las à discussão”.
“Temos que lutar pela vacinação e temos que provavelmente caminhar para uma terceira dose, sobretudo as pessoas mais velhas, temos que continuar a proteger-nos em relação a esta doença”, defende.
“Covid-19 Relato de um sobrevivente” é editado pela Caminho.
LUSA/HN
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