Mário André Macedo Enfermeiro Especialista em Saúde Infantil e Pediátrica

Pandemia social, caso do VIH

09/28/2021

A medicina é uma ciência social, e a política nada mais é do que medicina em larga escala. Trata-se de uma conhecida frase de Virchow, médico e político do século XIX, considerado o pai da medicina social, com importantes e relevantes trabalhos no campo das desigualdades em saúde.

É uma hipérbole afirmar que as disciplinas da saúde são uma ciência social, mas é inegável que têm uma enorme e importante componente social, tantas vezes injustamente negligenciada. Mesmo em contexto de pandemia. As pandemias não são aleatórias, são oportunistas. Afetam as sociedades por onde estas são mais vulneráveis. Aproveitando-se da forma como as pessoas vivem, se relacionam com o ambiente, outras espécies e umas com as outras.

A forma como o HIV afetou a África do Sul, de uma forma como não afetou nenhum outro país, é um exemplo paradigmático. O país tem, de longe, o maior número de pessoas a viver com VIH, 7,5 milhões num país com 60 milhões de habitantes. Estima-se que 75 mil pessoas morram anualmente, por consequências da SIDA no país. É um caso singular, sendo o único país de rendimento médio-alto, democrático, com mais recursos da região disponíveis para combater a doença, mas que apresenta dos piores indicadores mundiais relacionados com o HIV.

O motivo é simples, foi por opção política. As tensões políticas e militares que acompanharam a descolonização da região, o apartheid e tudo o que isso significou, a total ausência de um sistema de saúde exceto para a minoria branca, providenciou que o vírus tenha tido a oportunidade de circular sem perturbações. Não por desconhecimento da sua existência, em 1982 foi oficialmente diagnosticado o primeiro caso e a primeira morte no país. Na altura, estimava-se que a África Subsaariana tivesse 41 mil casos por ano.

A doença rapidamente ultrapassou os grupos de maior risco no princípio dos anos 80, os homens que fazem sexo com homens, consumidores de drogas endovenosas e hemofílicos. Primeiro nos centros urbanos, depois nos rurais, homens heterossexuais eram diagnosticados com VIH em número superior que a população de risco original. Para agravar a situação, as mulheres seropositivas igualavam os homens.

É indissociável o legado do colonialismo e apartheid, que moldaram a sociedade sul-africana no princípio dos anos 80, tornando-a extremamente vulnerável à pandemia emergente. A segregação atingia todos os aspectos da vida quotidiana, incluindo o emprego, onde a população negra estava reservada para trabalhos pouco qualificados e mal pagos, ou a habitação, com deslocações forçadas de milhões de pessoas, para bairros de lata na periferia das grandes cidades, ou para os bantustões, que concentravam 75% da população em 14% do território. O realojamento forçado provocou uma separação dos homens das mulheres. Estrangeiros no seu próprio país, os homens “imigravam” longas temporadas para os trabalhos que conseguiam obter. As mulheres, além de ficarem com a responsabilidade de criar as crianças, diariamente viajavam para os bairros ricos para serviços domésticos. Esta realidade favorece relações sexuais com vários parceiros, assim como a prostituição.

Os jovens homens sul-africanos cresceram assim, num ambiente hiperviolento, sem contacto com as suas famílias, repressivo e profundamente racista. Onde novas normais culturais foram aprendidas, que privilegiavam o sentimento de posse, violência e conquista sexual. Os homens socializados nesta nova matriz de agressividade, tornam-se os responsáveis por tornar a África do Sul no país com mais elevadas taxas de violação per capita do mundo. Este grave problema contribuiu para o aumento da transmissão do VIH.

A combinação da pobreza, escolaridade inexistente e o total desinteresse das autoridades de saúde, alimentou a ignorância e superstição sobre a doença. As pessoas não sabiam como se proteger. Tornou as mulheres mais vulneráveis a contrair a doença, que quando mais tarde engravidam, transmitem o vírus às crianças. A evolução da pandemia do HIV na África do Sul não foi uma calamidade acidental, mas sim, criada pelas condições sociais que um sistema criminoso causou deliberadamente.

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