Os doentes com psoríase enfrentam desafios no sistema de saúde assim que procuram ajuda médica pela primeira vez, contou-nos o presidente da PSOPortugal, Jaime Melancia. O acesso às consultas de dermatologia é o principal problema, sendo que “os doentes podem demorar até cinco anos a ter um diagnóstico de psoríase” e “muitos dos especialistas estão concentrados no litoral”. O presidente defendeu que as regras dos hospitais públicos “têm de ser iguais para todos”, depois de criticar a “falta de equidade” no SNS. Nesta entrevista, Jaime Melancia denunciou ainda um “sério” problema com que os doentes se deparam nas farmácias de alguns hospitais: “Estão a acontecer situações em que o hospital sugere, por razões economicistas, a alteração da medicação biológica que o médico prescreveu. Já reportámos as queixas de doentes em três hospitais em relação a esta situação e não estamos nada satisfeitos com as respostas”.
HealthNews (HN)- Como é que o dia a dia dos doentes é afetado pela psoríase?
Jaime Melancia (JM)- A psoríase é uma doença crónica sistémica que se manifesta predominantemente na pele, em que as lesões aparecem, muitas vezes, visíveis aos olhos dos outros e, por isso, tem um forte estigma social associado. Muitas vezes, por desconhecimento dos outros, originam sérios problemas em termos de discriminação, tentativas de impedir que os doentes usufruam do que os outros usufruem, por se pensar que as lesões estão relacionadas com questões de higiene ou que a doença é contagiosa. Nada disso é verdade.
É uma doença crónica, tem tratamento, felizmente, mas alguns doentes não têm a possibilidade de ter acesso aos tratamentos. Há grandes dificuldades no acesso a consultas no SNS. As consultas privadas têm um peso significativo para muitas pessoas que não têm seguros de saúde. Tudo isso são situações que influenciam o dia a dia dos doentes.
A psoríase afeta normalmente duas faixas etárias. Não quer dizer que não possa aparecer em qualquer idade, mas é mais prevalente dos 20 aos 30 e, depois, dos 50 aos 60 – é aquilo que está estudado. E realmente acaba por ser mais problemática nos mais jovens, que muitas vezes tem mais pruridos e problemas em lidar com a doença. Este ano, fomos tentar perceber junto dos jovens como era o seu dia a dia com a doença e como é que conseguiam ultrapassá-la. Uma das frases que apareceu com alguma graça foi: “a psoríase é uma chatice”. Isto diz tudo. Hoje em dia, tentamos não dizer psoríase, mas sim doença psoriática, para lhe dar a importância de uma doença sistémica, e não uma mera condição da pele, sendo muitas vezes desvalorizada pelo próprio doente e, algumas vezes, pelo médico de família. Portanto, há uma necessidade muito grande de informação, para que a doença possa ser mais bem gerida.
É uma doença que tem uma carga enorme em termos do dia a dia das pessoas, quanto mais não seja porque há tratamentos diários que se tem de fazer com cremes e champôs, ou há medicamentos que se tem de tomar com alguma regularidade. E é evidente que, quando vamos para situações mais graves, há necessidade de recorrer a outro tipo de tratamentos que já não são tópicos; são tratamentos sistémicos, em comprimidos ou injeções – injeções essas que são os chamados medicamentos biológicos. Atualmente, existem tratamentos eficazes para quase todas as formas de psoríase. É uma diferença do dia para a noite um doente bem tratado, com a sua pele limpa ou quase limpa, e um doente que não consegue ter esse tratamento.
A saúde mental é uma das comorbilidades que necessita de maior atenção e que repetidamente é descurada no acompanhamento do doente psoriático. O tratamento psicológico é muitas vezes necessário logo numa fase inicial. Infelizmente, tem-se muito pouco, mas é essencial para ajudar a gerir e controlar a doença. Quando as lesões são exacerbadas, criam-se situações de ansiedade e stress que, por sua vez, são potenciadoras de agravamento da doença. Portanto, entra-se num círculo vicioso em que o doente nunca está bem. A parte da saúde mental é muito importante.
HN- Em Portugal, quais os principais desafios que os doentes enfrentam?
JM- O principal desafio é o acesso à consulta, em primeiro lugar, e um diagnóstico precoce. Os doentes podem demorar até cinco anos a ter um diagnóstico de psoríase. Felizmente, as situações leves da psoríase são a grande maioria, mas necessitam de ser tratadas adequadamente desde o início, de modo a evitar o exacerbamento rápido da doença, que se torna mais difícil de controlar.
A dermatologia é uma das especialidades no SNS com listas de espera mais longas. No interior, o acesso à dermatologia é pior, há hospitais que não têm serviços de dermatologia. Muitos dos especialistas estão concentrados no litoral.
Além da questão do acesso à consulta e aos tratamentos, existem ainda encargos com a terapia auxiliar – cremes, champôs, loções que todos os doentes têm de usar para alivar as lesões da pele. Estes são produtos considerados dermocosméticos, com o IVA a 23%, e não são baratos. Para ajudar os associados da PSOPortugal, implementámos um programa de apoio que permite usufruir de descontos nestes produtos em todas as farmácias do país e que é apoiado pelas empresas farmacêuticas de dermocosméticos. Não é uma comparticipação a 90% como no caso dos medicamentos tópicos, mas é uma ajuda que ronda entre os 10 e os 20% do preço dos produtos constantes de uma tabela disponível no site da PSOPortugal. Mas abrange muito poucas pessoas comparado com o universo de mais de 200 mil doentes de psoríase em Portugal.
Mas, neste momento, o principal desafio é o diagnóstico mais precoce e o acesso à consulta de dermatologia.
HN- O acompanhamento universal dos doentes está longe de ser uma realidade?
JM- Está para sair em breve um estudo da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia, nomeadamente do Grupo Português de Psoríase, para determinar a prevalência real dos doentes psoriáticos em Portugal e como estão a gerir a sua doença. O que se sabe empiricamente é que cerca de 100 mil doentes estão referenciados como doentes de psoríase, pelo que, provavelmente, só metade dos doentes é que estarão a ser acompanhados.
HN- Pode falar um pouco mais do acesso ao tratamento?
JM- Fruto do esforço da PSOPortugal, foi aprovada a Lei n.º 6/2010 de 7 de maio, que enquadrou no escalão A de comparticipação os medicamentos queratolíticos e antipsoriáticos, de aplicação tópica e sistémica. Os medicamentos sistémicos e os biológicos também são comparticipados. Os biológicos são de fornecimento gratuito. Só que o tratamento da psoríase obriga a determinadas linhas de orientação que não são só clínicas, que têm também em atenção o custo dos medicamentos. Apesar de os medicamentos biológicos, por exemplo, serem bastante eficazes para a psoríase moderada a grave, obrigam a que sejam primeiro tentados outros tratamentos. Mas cada caso é um caso e os doentes não reagem da mesma maneira.
No sentido de minimizar o esforço financeiro dos associados da PSOPortugal com os seus tratamentos, estabelecemos protocolos e acordos de cooperação com estabelecimentos de saúde, nomeadamente farmácias, clínicas, termas e outros, que permitem facilitar aos nossos associados o acesso a cuidados de saúde. Neste âmbito, foi desenvolvido o programa “A Cuidar da SUA Pele” que permite aos sócios da PSOPortugal usufruir de descontos na aquisição de cremes hidratantes, champôs e outros auxiliares terapêuticos, que constam de uma tabela de comparticipações elaborada e disponibilizada pela PSOPortugal.
Estamos agora com um problema sério que está a ser denunciado pelos doentes. Estão a acontecer situações em que o hospital sugere, por razões economicistas, a alteração da medicação biológica que o médico prescreveu. Já reportámos as queixas de doentes em três hospitais em relação a esta situação e não estamos nada satisfeitos com as respostas. Se o médico está certificado pela Direção Geral da Saúde para prescrever este tipo de medicamentos, é esse medicamento que tem de ser dado ao doente e em tempo útil. Há hospitais que cumprem isso e que fornecem ao doente, e há outros que não. Já tivemos doentes que vieram da Figueira da Foz a Lisboa porque Coimbra não quis dispensar o medicamento. Agora é no Hospital de São João, do Porto, e em Vila Nova de Gaia que está a acontecer a mesma coisa. Os doentes desesperam e recorrem a outros hospitais que cumprem a lei e não põem objeções. Há orientações, mas são um aconselhamento. Quem decide é o médico que viu o doente e que sabe perfeitamente da existência de eventuais alternativas. Portanto, se o médico prescreve um medicamento, é este o mais adequado para o doente. Não pode ser a farmácia do hospital, porque tem determinadas regras internas, a pôr em dúvida aquilo que o médico decide e pelo qual é responsabilizado. Isto é brincar com os doentes. Existe falta de equidade no SNS. Cada hospital parece que faz o que quer. Isto não pode ser. São sempre os que mais necessitam que são mais prejudicados. As regras têm de ser iguais para todos.
E é preciso nunca esquecer que um doente bem tratado é uma mais-valia para a sociedade. É mais produtivo, menos absentista, mais consumidor e mais feliz. Além disso, é também, no longo prazo, um menor consumidor dos recursos do SNS.
HN- Qual é a missão da PSOPortugal? Que projetos estão a desenvolver na associação?
JM – A PSOPortugal – Associação Portuguesa da Psoríase é uma IPSS da saúde, fundada em 2005. Temos como principais objetivos a promoção da melhoria da qualidade de vida e a defesa dos direitos dos portadores de psoríase no seu contexto pessoal, profissional e social. Para isso, ajudamos a promover iniciativas de caráter social e cultural, com o propósito de esclarecer e sensibilizar a opinião pública acerca das características da doença. Cooperamos também com as entidades técnicas de saúde, no desenvolvimento e na investigação da doença, disponibilizando informação aos técnicos de saúde, bem como aos doentes, dos resultados das aplicações de vários tipos de terapêuticas, assim como na melhoria do acesso às consultas e tratamentos.
Esta pandemia, por exemplo, causou bastantes problemas a todos os doentes, com as dificuldades no acesso e o medo que as pessoas tinham de ir aos hospitais, etc. Por outro lado, esta pandemia trouxe a proximidade dos medicamentos, ou seja, os tais medicamentos de dispensa hospitalar serem fornecidos na farmácia comunitária ou mesmo em casa dos doentes. É este trabalho conjunto que temos também na FENDOC – Federação Nacional das Associações de Doenças Crónicas, por exemplo na elaboração do estatuto do doente crónico. É algo em que estamos muito empenhados, porque há que criar algumas condições excecionais para os doentes crónicos. Teve o envolvimento do Sr. Presidente da República, que fez questão de apoiar a iniciativa, tal como aconteceu com o estatuto do cuidador informal.
A PSOPortugal tem vindo a desenvolver inúmeras iniciativas para informar os doentes e familiares sobre a doença, mas também, para desmistificar o estigma e a desinformação que ainda existe na sociedade. Este ano, decidimos dar especial atenção aos doentes mais jovens e realizámos um estudo para tentar perceber como lidam com a psoríase. Fruto do conhecimento que obtivemos, preparámos a campanha “PSOFriends” (psofriends.psoportugal.pt), uma série com Luís Filipe Borges que retrata a força da amizade e a importância da empatia, que derruba mitos e preconceitos. E vai mesmo mais além, mostrando que ninguém está sozinho e que a aceitação existe, a dos outros e, acima de tudo, a de si próprio. Especialistas de várias áreas também participarão nestes episódios. O início da série PSOFriends nos canais digitais da PSOPortugal coincide com o Dia Mundial da Psoríase, 29 de outubro.
HN- Acha que a sociedade em geral está sensibilizada para a doença? O que é que é preciso fazer mais?
JM- O conhecimento é a base de tudo. Se as pessoas conhecerem a doença, é tudo muito fácil para os doentes, que saberão como lidar com ela, e para os outros, que saberão como lidar com os doentes. Muitas vezes os doentes só têm o apoio da própria família, têm problemas no trabalho, têm graves problemas nas escolas, fruto do desconhecimento até de professores de educação física do que é a psoríase. Isto é grave. Até mesmo situações de bullying na universidade. Como o doente da psoríase já de si tem a autoestima baixa, tudo isto é muito penoso para a qualidade de vida.
Portanto, a sociedade precisa de ser informada, mas as redes sociais não chegam. Temos de conseguir chegar àqueles que mais precisam de informação e, para isso, teremos de recorrer à televisão. Por exemplo, nos programas de grandes audiências, com uma linguagem simples, para que as pessoas com menos literacia em saúde possam mais facilmente adquirir esse conhecimento. Também nas escolas devia ser abordada a temática da saúde e das doenças – por exemplo, passar uns vídeos informativos, que podiam ser elaborados pelas próprias associações de doentes, para que o conhecimento comece logo na base. As crianças são um excelente veículo de passagem de informação à família. A sociedade só ajudará os doentes quando estiver bem informada. Há muito trabalho a fazer, e é um trabalho constante.
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