A História da Diabetes remonta aos primórdios dos tempos e a sua identificação enquanto doença, aos primórdios da civilização. Foram necessários milhares de anos até que no século XI, na Pérsia, por Ibn Sina (latinizado Avicena), que no seu “Cânone da Medicina”, descreveu com extrema precisão a doença. Seriam necessários mais quase mil anos, para que Banting e Best, apoiados pelo bioquímico James Collip, desenvolvessem o primeiro tratamento eficaz contra a doença, a Insulina. Esta é a história, necessariamente sucinta, desse trajeto.
Tanto quanto se sabe a primeira descrição precisa da diabetes terá sido feita no século XI, na Pérsia, por Ibn Sina (latinizado Avicena), que no seu “Cânone da Medicina”, descreveu com extrema precisão a doença. Cerca de seis séculos depois, em 1679, Thomas Willis acrescentaria “mellitus” à designação clínica, numa associação ao sabor doce da urina – facto já descrito na antiguidade por médicos gregos, chineses, indianos, egípcios e persas, sublinha Barros Veloso, médico e historiador. Em 1776, Matthew Dobson, médico de Liverpool, identificou a presença de glicose na urina, defendendo ainda que ao contrário do que se pensava até então, a doença não era resultado de problemas renais. Contemporâneo de Dobson, o alemão Johann Peter Frank descreveria as diferenças clínicas entre diabetes mellitus e diabetes insípida.
Pesem os inúmeros passos dados, “o caminho para a descoberta da causa da doença começaria em 1867, quando Rudolf Virchow, aconselhou Paul Langerhans, jovem médico de uma família de médicos – o pai e dois irmãos eram reputados clínicos de Berlim – a escolher, como tema da dissertação de final de curso, o estudo histológico do pâncreas. A sugestão era interessante desde logo porque ainda ninguém a tinha posto em prática. O pâncreas era um órgão que já se sabia estar relacionado com a função digestiva mas cuja histologia ainda era completamente desconhecida. Langerhans seguiu o conselho do mestre e acabou por descrever uns “aglomerados” de células – zellhaufen, no texto original – que, já depois da sua morte foram batizadas em sua homenagem, por Édouard Laguesse, como ilhéus de Langerhans”. O mistério que envolvia a doença iria permanecer impenetrável por mais algum tempo. Langerhans iria para a Madeira para tratar a tuberculose, e aí casaria em 1885 e viria a falecer a 20 de Julho de 1888, na Quinta das Angústias (hoje “Quinta Vigia”), estando sepultado numa campa do Cemitério inglês onde se pode ler um excerto da Odisseia, escolhido por si: “E também já não desejava continuar a viver, nem olhar a luz do sol a brilhar”.
“Só um ano depois, em 1889, Oskar Minkowski e Joseph von Mering, em Estrasburgo, relacionaram pela primeira vez a diabetes com o pâncreas”, explica Barros Veloso. “A história que envolve a descoberta é muito interessante. Mering era o que se poderia chamar um mulherengo bon vivant, faceta que lhe granjeou alguns aborrecimentos em Berlim, onde trabalhava. Um processo disciplinar obrigou-o a mudar-se para Estrasburgo, cidade onde passou a fazer investigação em animais.
Começou aí a estudar o pâncreas sob o ponto de vista da secreção externa, ou seja, a ação das enzimas lançados no intestino para a digestão das gorduras. Ora, para se estudar este mecanismo era necessário fazer pancreatectomias totais em cães, mantendo-os vivos, procedimento que com os recursos disponíveis na época, não era fácil.
É nesta fase que entra em cena o amigo Oskar Minkowski, que era muito hábil na cirurgia (protagonizara, em 1888, a primeira hepactotomia bem sucedida num ganso), “que se disponibilizou para realizar as pancreatectomias nos cães durante o período em que von Mering tinha de se ausentar devido à doença do sogro”, relata Barros Veloso.
– Vai lá ver o teu sogro que eu faço-te isso – terá dito. “Mering aceitou, e Minkowski iniciou a extirpação completa dos pâncreas de cães, sem que estes morressem, condição essencial para o sucesso da investigação. Os dias foram passando e ao entrar no biotério, Minkowski começou a reparar que o chão estava habitualmente encharcado com urina dos animais. Repreendeu o tratador, supondo que se tratava de falta de cuidado.
– Ainda há bocado limpei o chão e já está outra vez todo molhado; é isto o dia todo – justiçou–se o funcionário”.
“Foi nesse momento que Minkowski – ainda na ausência de von Mering – se recordou de um conselho que o seu professor, Bernhard Naunyn, lhe dera para que verificasse sempre se havia açúcar na urina nos casos de poliúria. E havia! Foi assim que Minkowski associou o pâncreas à diabetes. Entretanto von Mering regressou a Estrasburgo e Minkowsky anunciou-lhe que os cães pancreatectomizados se tornavam diabéticos. Depois de repetirem as experiências, publicaram o artigo dando conta da descoberta”, prossegue Barros Veloso. “Mering foi entretanto para férias e Minkowsky redigiu o texto, colocando o nome do colega em primeiro lugar porque era mais velho e para obedecer à ordem alfabética. Por isso muitos atribuíram os créditos a von Mering mas a descoberta levantaria alguma polémica. “Não querendo diminuir o mérito de von Mering, Minkowski manteve-se sempre em segundo plano. Todavia, antes de morrer, deixou à mulher uma carta onde relatava todos os passos da descoberta, missiva que se tornou pública e cujo conteúdo hoje se conhece”, salienta o médico. Da relação entre pâncreas e diabetes à ideia de se replicar o exemplo do tratamento do hipotiroidismo, no qual eram utilizados extratos de tiroide, foi um passo natural. Minkowski tentou-o e, depois dele, muitos outros, convictos de que era possível retirar do pâncreas a substância cujo deficit provocava diabetes para a administrar aos doentes.
Seria necessário esperar por 1920 e, como em muitos outros determinantes da História, o acaso que levou Frederick Grant Banting-, um jovem médico canadiano herói da I Grande Guerra – que à época desempenhava funções de ajudante de fisiologia (ainda que a sua área de especialização fosse a ortopedia) ter que pesquisar literatura para preparar uma lição sobre o pâncreas que teria de dar no dia 1 de novembro de 1920 na Western University, de Ontário.
A pesquisa conduziu-o a artigos com relatos dos vários investigadores que “exploraram” a hipótese da diabetes ser provocada pela insuficiência de uma hormona segregada nos ilhéus de Langerhans. Entre eles os trabalhos de Minkowski, que o convenceram de que este não fora bem-sucedido por ter utilizado secreções digestivas as quais, segundo a sua linha de pensamento, destruiriam as secreções específicas dos ilhéus, responsáveis pelas melhorias – por esta razão, conjeturou, modestas – detetadas em modelos animais e até em humanos. “Uma convicção que seria reforçada após a leitura de um artigo publicado na revista Surgery, Gynecology and Obstetrics, onde era descrito o caso da descoberta, no decurso de uma autópsia, de um cálculo que obstruía o canal que drena do pâncreas, provocando a atrofia deste. Foi então que lhe surgiu a ideia de laquear os canais do pâncreas de cães – com os animais vivos – que levaria à morte dos ácinos glandulares dos quais poderia depois retirar o produto ativo que não seria digerido pelas proteases pncreáticas” relata Barros Veloso. No seu caderno de notas terá mesmo escrito “Ligar duto pancreático do cão. Manter cães vivos até que os ácinos se degenerem, sobrando ilhotas. Tentar isolar secreção interna delas e aliviar glicosúria”.
“Com esta ideia na cabeça, Banting viajou para Toronto e apresentou-a a John Macleod, professor na universidade local que depois de muita insistência do jovem médico concede-lhe uma oportunidade para testar a sua hipótese.
A história que se conta – nas descobertas há sempre uma história mítica – é que Macleod terá dito a Banting que iria partir de férias para a Escócia e que durante o tempo em que estaria ausente o autorizava a utilizar um dos laboratórios da universidade. Mas impôs uma condição: trabalhar com um dos seus assistentes formados em bioquímica. O habitual era que no período de férias todo o departamento encerrasse, pelo que não seria possível a Macleod autorizar Banting a utilizar as instalações sem a presença de alguém da universidade”, explica o médico. Best não ficou porque quis, acrescenta: “Segundo se conta, ele e um outro colega, Clark Noble, tiraram à sorte com uma moeda ao ar, para decidir qual dos dois iria servir de babysitter a Banting. O azar calhou a Best mas a história iria revelar, mais tarde, que afinal era a sorte que estava do seu lado”.
Regressemos ao laboratório. Macleod deixara a Banting e Best 10 cães para as experimentações. Em setembro quando Macleod regressou de férias já havia, “alegadamente” fortes indícios de que os extratos reduziram a glicosúria em vários cães. “O processo passava por laquear o duto para atrofiar o pâncreas. Algum tempo depois, quando achavam que o pâncreas já estava suficientemente atrofiado, faziam um extrato que administravam aos cães diabéticos – aos quais tinha sido retirado o órgão. Em alguns animais verificaram que realmente a glicosúria havia diminuído…” conta Barros Veloso.
“A primeira reação de Macleod foi de descrédito. Decidiu refazer as experiências, ainda convencido – como Banting e Best – que a laqueação do canal e subsequente atrofia do pâncreas destruía a secreção externa, o que era falso” sublinha o médico e historiador, para logo acrescentar: “Falso porque as enzimas só são ativadas no intestino e existem no pâncreas como pré-enzimas. Esta convicção que irá perdurar de maio a dezembro de 1921 até à entrada em cena do bioquímico James Collip, que foi determinante no processo de purificação dos extratos. Numa primeira fase ainda Banting e Best ainda recorreram a pâncreas de fetos bovinos,convencidos de que nessa fase de maturidade as secreções externas ainda não estariam activas. “Até que a certa altura, enquanto Collip trabalhava no sentido de conseguir um extrato mais purificado, mas ainda assim longe da pureza necessária, Banting decidiu avançar com um teste em humanos. Leonard Thompson, um rapaz de 14 anos seria o primeiro a receber insulina e a registar melhorias. De curta duração, já que a gravidade dos efeitos secundários resultantes da impureza do produto levaram quase de imediato à suspensão do tratamento.
“Mas Collip continuava a tentar descobrir um método para extrair insulina purificada. Tudo isto acontecia no meio de um ambiente que era tudo menos pacífico. Banting, que tinha mau feitio ficava furioso quando Macleod se referia à descoberta no plural: «nós». Achava que a insulina era descoberta sua. No meio de toda esta convulsão, Collip decide, numa primeira fase, que não iria revelar aos colegas o método que tinha desenvolvido para extrair a insulina e que o ia registar em seu nome. Banting ficou furioso e segundo se conta terá mesmo chegado a vias de facto apertando-lhe o gasganete” relata Barros Veloso
Mau grado as desavenças, as experiências prosseguiram e os resultados obtidos com a substância purificada começaram a ser muito positivos. O problema é que a certa altura o stock inicial de insulina acabou e Collip esquecera-se dos passos exatos que o tinham conduzido ao primeiro lote. Entretanto, devido à falta de insulina, um dos doentes morreu. Mais tarde, Colip descobriu um novo método de purificação e a partir daí a técnica disseminou-se rapidamente, particularmente a partir das clínicas de Frederick Allen, em Morristown, New Jersey, e de Elliott Joslin, em Boston.
Chegados a este ponto importa dizer que como nos contos ficcionados, também nesta epopeia tudo acabou bem. Banting, Best e Collip partilharam a patente da insulina, tendo vendido os direitos sobre a substância pelo valor de um dólar à Universidade de Toronto, garantindo deste modo que a descoberta extraordinária seria colocada ao serviço da humanidade. Banting e Macleod receberam em 1923 o Prémio Nobel da Medicina mas Banting entregou a Best metade do valor pecuniário do galardão. Macleod, para além de destacar o papel fundamental de Collip e Best na descoberta da insulina no discurso que proferiu na Academia Sueca durante a cerimónia de entrega do Nobel, doou metade da sua parte no prémio a Collip”, conclui Barros Veloso.
MMM/HN
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