Trabalho dos cientistas saiu do laboratório e entrou pela casa dos portugueses

19 de Fevereiro 2022

Com a pandemia de covid-19 os cientistas saíram do laboratório para a casa dos portugueses através dos jornais, rádios e televisões, onde diariamente, nos últimos dois anos, deram esclarecimentos, explicações e opiniões, nem sempre consensuais, nem sempre bem acolhidas.

Conceitos como imunidade, índice de transmissibilidade e variantes de vírus passaram a fazer parte do léxico do cidadão comum.

Habitualmente resguardados no local onde trabalham, nas conferências em que participam, nos estudos que publicam em revistas especializadas, os cientistas ficaram mais expostos e tiveram de adaptar a sua linguagem: foram-lhes pedidas respostas e soluções para uma nova doença infecciosa, que surgiu em 2020 e que fechou e deixou o mundo em suspenso.

Para a geneticista Luísa Pereira, “a expectativa do público sobre a resposta rápida da ciência” à pandemia “põe muita pressão”, sobretudo quando a informação que circula “é quase tão imediata”.

A investigadora do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde descreve como abismal a “quantidade e rapidez de informação” que os cientistas, com diferentes saberes, tiveram de “processar, analisar, estudar”.

“Para ser capaz de falar ao público e transmitir o melhor possível, nós todos tivemos que estudar muito, mantermo-nos atualizados dia-a-dia, não é do nada, é um trabalho na sombra”, afirmou à Lusa.

Luísa Pereira considera que “seria criminoso” que, dispondo de conhecimento privilegiado, não ajudasse a informação sobre a pandemia “a fluir”, mesmo quando “a ciência não tem certezas absolutas”.

“A ciência faz observações, desenha modelos e faz previsões”, frisou.

O bioquímico Cláudio Soares, que dirige o Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) António Xavier, fala em “responsabilidade social” dos cientistas, que “se chegaram à frente desde o início da pandemia”.

“Houve um imenso esforço de comunicação de ciência em Portugal. Arriscaria a dizer que o grande sucesso da vacinação e do controlo da pandemia passou muito por essa comunicação, por dizer ao público as coisas, mostrar o que se estava a passar”, sustentou, acrescentando que, se assim não fosse haveria mais negacionistas, “que se alimentam da ignorância”, e a taxa de vacinação não seria tão elevada.

Cláudio Soares reconhece que os cientistas, “sendo muito especializados, têm um jargão próprio que não é o melhor para comunicar”. Não obstante isso, “o jargão foi muito explicado”. A “emergência do conhecimento” e a “sofreguidão da sociedade de saber” o que se passava assim o exigiram.

A pandemia da sida também exigiu esse trabalho de comunicação e esclarecimento. “Os cientistas tiveram que vir a terreno dizer que as pessoas não ficavam infetadas por partilharem um copo”, exemplificou o investigador, que lidera no ITQB o laboratório de modulação de proteínas.

Contudo, entre uma pandemia e outra houve impactos que ditaram a diferença. Com a covid-19 houve “perturbação da sociedade como um todo”, o “impacto planetário de as pessoas ficarem em casa” confinadas, apontou Cláudio Soares.

Segundo a virologista Maria João Amorim, do Instituto Gulbenkian de Ciência, trata-se de “uma situação invulgar”.

“A pandemia ocupou as nossas notícias 24 horas por dia e os cientistas entraram mais no espaço público”, sublinhou à Lusa.

Para a investigadora, o papel do cientista nessas circunstâncias é “tentar não confundir mais do que possa esclarecer”. Ela própria, diz, participou em iniciativas de divulgação científica quando achou que “era mesmo necessário, mais crítico”, quando havia “um novo desenvolvimento”, quando, por exemplo, havia dúvidas sobre a eficácia e a segurança das vacinas.

De acordo com Maria João Amorim, as fronteiras entre o que se sabe, o que ainda não se sabe e “falta descobrir” e a opinião devem ficar bem definidas pelo cientista quando intervém, para evitar confundir as pessoas.

O imunologista Miguel Prudêncio, do Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, defende que, mesmo quando há margem para a opinião, esta deve ser contextualizada e suportada por dados e o raciocínio por detrás dessa opinião partilhado.

O abuso de “etiquetas” como imunidade de grupo ou endemia, “definições que nem sempre são estanques”, podem gerar “mais confusão, ansiedade nas pessoas”, adverte.

Para a geneticista Luísa Pereira, do i3S, a própria “dinâmica da pandemia”, feita de incertezas, presta-se a “muitas dessas confusões”.

“A evolução é muito grande, está-se sempre a redesenhar o cenário, isto é difícil para o público em geral perceber”, admitiu.

O SARS-CoV-2, o coronavírus que provoca a doença respiratória covid-19, foi mudando e, com isso, o conhecimento foi-se cimentando. As dúvidas e contradições, geralmente contidas no debate entre pares, foram postas a descoberto na praça pública.

“A ciência é a contradição até haver um consenso, isso é normal, os cientistas estão habituados a isso. A verdade por vezes não se conhece, vai-se conhecendo, o público é que não está habituado a isso. As pessoas querem certezas, as certezas não existem em curtos períodos, o processo científico é lento”, esclareceu Cláudio Soares, do ITQB.

Miguel Prudêncio, que nos media se tornou um dos rostos do IMM para a questão das vacinas, recorda que “muitas vezes” os cientistas foram acusados de “mudar de opinião” ao longo da pandemia da covid-19. Injustamente, a seu ver.

“É preciso que as pessoas percebam que é assim que a ciência se constrói”, assinalou, enfatizando que “o conhecimento que se acumula é que vai ditando a verdade do momento”, com as “teorias e explicações” a serem ajustadas em “função dos dados existentes”.

O imunologista, com trabalho feito sobre vacinas contra a malária, já antes da pandemia saía do laboratório para as escolas, onde, com gosto, explicava às crianças o que fazia.

A pandemia de covid-19 trouxe-lhe, no entanto, uma exposição pública a que “não estava habituado” e que teve “as suas consequências”: além de mensagens de agradecimento e elogio, recebeu também insultos.

“Felizmente, recebi muito mais mensagens de pessoas que não conheço a agradecerem ter sido claro, ter dado uma informação que as pessoas compreenderam, do que a insultarem”, contou.

Miguel Prudêncio dará a sua missão por cumprida se, de todas as vezes em que apareceu nos ecrãs da televisão, uma pessoa renitente à vacinação decidiu vacinar-se depois de o ouvir.

“Não se trata de convencer as pessoas a fazerem uma coisa que não querem, trata-se de informar as pessoas para que tomem uma decisão baseada em factos em vez de mentiras e desinformação”, justificou, realçando ser essa a “obrigação de quem tem os conhecimentos para o fazer”.

NR/N/LUSA

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