É seguro consumir iodo para prevenir efeitos de desastre nuclear em Portugal?

19 de Março 2022

Em causa estão os eventuais efeitos positivos que a toma de iodeto de potássio pode ter na prevenção do cancro da tiroide em situações de exposição a radiação nuclear.

A invasão russa da Ucrânia e a possibilidade de este conflito resultar num desastre nuclear tem levado muitos europeus, incluindo portugueses, a correrem às farmácias em busca de suplementos de iodo. Em causa estão os eventuais efeitos positivos que a toma de iodeto de potássio pode ter na prevenção do cancro da tiroide em situações de exposição a radiação nuclear.

Contactado pelo Viral, o coordenador do departamento de Endocrinologia do Hospital São João e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Davide Carvalho, explica o que está por trás desta corrida ao iodo.

“Se houver uma explosão nuclear, utilizando eventualmente ogivas nucleares, há libertação de iodo radioativo, sendo que as hormonas da tiroide são produzidas recorrendo a moléculas de iodo. Então, o que acontece é que a tiroide capta avidamente o iodo, nomeadamente este iodo radioativo, e ele pode causar cancro da tiroide. No sentido de evitar o cancro da tiroide, podemos utilizar comprimidos de iodeto de potássio que impedem a captação do iodo. Isto é, a glândula tiroide fica completamente bloqueada pela administração de iodeto de potássio e não capta este iodo radioativo. Conseguimos assim prevenir o desenvolvimento de cancro”, sustenta.

Assim sendo, é seguro consumir iodo para prevenir efeitos de desastre nuclear em Portugal?

“A resposta é não”, assegura Davide Carvalho. O endocrinologista explica que consumir iodo preventivamente “não é seguro, particularmente se forem pessoas idosas e que já tenham algum aumento do volume da glândula tiroide”, sobretudo em países cuja probabilidade de um ataque nuclear é baixo, dado que os riscos da ingestão de iodeto de potássio de forma generalizada podem ser maiores do que os benefícios: “Diria que no nosso país, teoricamente, o risco de virmos a ser atingido por uma chuva de iodo ou uma chuva contaminada com iodo é pequena e provavelmente o risco decorrente de uma distribuição a toda a população de comprimidos de iodeto de potássio será maior do que o benefício”.

O professor da FMUP esclarece que enquanto “nas crianças e nas lactantes esta terapêutica parece ser bastante eficaz”, há outros grupos que podem sofrer efeitos negativos indesejados.

“Nas pessoas idosas, se a pessoa previamente tiver tido bócio (aumentos de volume da glândula tiroide) e se eu lhe der iodo neste caso sob a forma de iodeto de potássio, posso causar hipertiroidismo [produção em excesso de hormonas tiroideias] ou, por outro lado, este iodo pode, em alguns indivíduos, bloquear a libertação das hormonas da tiroide e resultar em hipotiroidismo [produção deficitária de hormonas tiroideias]”, fundamenta.

Davide Carvalho considera que a ingestão de iodeto de potássio “não é uma terapia inócua” e deve ser sempre acompanhada: “Uma coisa é ingerir iodo sobre a forma terapêutica em que há um médico que prescreve e monitoriza. Outra coisa é dizer à população para tomar iodo, porque o iodo em excesso e o hipertiroidismo podem resultar em arritmias cardíacas, alterações gastrointestinais, emagrecimento, sudação, etc.”

Assim sendo, o endocrinologista aconselha “calma” à população portuguesa e lembra que “as entidades, neste caso a DGS, estarão atentas à situação”. “Agora, o teatro de guerra é próximo de Chernobyl, portanto, se não forem disparadas ogivas nucleares em direção ao ocidente, a probabilidade de nós termos é baixa. “Se, por acaso, essa situação de ameaça nuclear se perspetivar, com certeza que existirão condições para que seja possível termos acesso a comprimidos de iodeto de potássio”, remata.

Em que circunstâncias deve ser distribuído iodo à população?

Apesar de Portugal não ter um risco elevado de exposição à radiação nuclear, o coordenador do departamento de Endocrinologia do Hospital São João informa que há outras zonas do globo que podem beneficiar da toma de iodeto de potássio. O professor da FMUP lembra que aquando do acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, “houve a distribuição na Polónia de iodeto de potássio para evitar que a chuva com iodo pudesse causar problemas na população polaca”. No entanto, sublinha Davide Carvalho, para que a terapêutica tenha efeito é necessário que a ingestão dos suplementos de iodo seja feita no momento certo.

“Se se administrar iodeto de potássio imediatamente antes da queda da radiação, podemos conseguir bloquear praticamente a 100% [a captação de iodo radioativo]. Se for passado duas horas, conseguimos ter uma eficácia de impedir a captação de iodo radioativo em cerca de 80%. Isto vai diminuindo à medida que passa o tempo e ao fim de 24 horas ele é praticamente zero, de maneira que temos de tomar outro comprimido de iodeto de potássio”, afirma.

Davide Carvalho recorda que “no nosso país, quando foi o desastre Chernobyl, não se chegou a distribuir iodo” e que “agora, o teatro de guerra é próximo de Chernobyl, portanto, pela mesma razão, se não forem disparadas ogivas nucleares em direção ao ocidente, a probabilidade de nós termos contaminação é baixa”.

Diferente é a situação no centro da Europa, já que “se houver, de facto, uma exposição nuclear por mísseis que atinjam centrais nucleares que levem à rutura dos reatores nucleares pode haver libertação de iodo radioativo”. Por isso, nesses países onde o risco de exposição a radiação nuclear é maior, pode ser boa ideia disponibilizar estes comprimidos à população de forma gratuita, tal como a Bélgica já faz desde 2018. No entanto, assegura Davide Carvalho, os mesmos só devem ser tomados quando houver indicação das autoridades sanitárias nesse sentido.

Texto publicado ao abrigo da parceria entre a plataforma de Fact Checking Viral-Check e o Heathnews.pt

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