A convenção sobre as armas químicas e biológicas, ratificada por 183 países, proíbe explicitamente a produção, desenvolvimento, armazenamento e a aquisição de qualquer agente biológico para fins não pacíficos. No passado dia 11 de março, o conselho de segurança da ONU discutiu, a pedido da Rússia, as alegações de Moscovo que envolvem o suporte e financiamento dos EUA a 30 laboratórios ucranianos. Foi afirmado, pelo embaixador russo, que “durante a operação militar especial, descobriu-se que Washington promovia um programa de armas biológicas ucranianas, cujo alvo final seria a Rússia.” As alegações foram repreendidas como ilusões e fabricações russas, cujo intuito era tentar ensaiar uma justificação para a invasão de outro país soberano.
O que fez nascer esta desinformação? E como teve oportunidade de se expandir, e ser ainda hoje replicada nas redes sociais? Um relatório recente da OMS, que aconselhava as autoridades de saúde ucranianas a destruírem amostras biológicas dos seus laboratórios, serviu de base para esta teoria da conspiração. A Federação Russa, afirma que esta simples recomendação da OMS é na realidade uma prova de um programa ilegal de armas biológicas. Tal não poderia ser mais falso nem descabido. Esta recomendação é a normal para países em guerra, ou para quando existe um risco para a integridade física dos laboratórios, tal como ocorre na Ucrânia devido à invasão russa.
Estas acusações capciosas, pretendem desviar a atenção do perigo real para toda a região, caso um ataque aos laboratórios se concretizasse. Têm como segundo objetivo, camuflar que na realidade é a Federação Russa quem não cumpre a convenção sobre as armas biológicas de 1972. Não há evidência nem controlo internacional sobre o real estado do programa de armas biológicas, herdado da União Soviética, e na altura, já com 20 anos de incumprimento com as obrigações assumidas.
A verdade é que a OMS agiu de forma cautelosa e no cumprimento das melhores práticas de segurança. Para evitar danos maiores à população, foi emitida uma recomendação para que os materiais biológicos fossem destruídos, de forma a evitar a libertação acidental ou premeditada por forças russas. Em caso de perigo, seja causado por uma força invasora ou um desastre natural, a opção certa é proceder à destruição controlada e segura. Os mesmos cálculos aplicam-se a qualquer laboratório do mundo. Em 2005, durante o furacão Katrina, os mesmos protocolos foram ativados nos EUA, preferencialmente de forma controlada, embora haja relatos de destruição manual de espécimes perigosas com lixivia, para evitar a libertação dos microrganismos.
Os laboratórios são essenciais para o sistema de vigilância de saúde pública. Como ficou bem demonstrado durante a pandemia, sem este recurso, teria demorado uma eternidade a identificar o problema e seria impossível controlar a Covid-19.
Os laboratórios ucranianos receberam auxílio americano em duas ocasiões diferentes. Nos anos 90, ao abrigo da iniciativa para redução de dano, que visava a destruição controlada dos programas de armas biológicos e a melhoria da segurança das instalações. Durante a pandemia, voltaram a receber apoio. Neste caso, ajuda totalmente civil, tanto por parte do CDC americano como da própria OMS, no âmbito do programa Global Health Security Agenda. Este programa, lançado em 2014, pretende fortalecer a capacidade de resposta mundial a doenças infeciosas, que sejam ameaças para a saúde global, e melhorar a segurança e procedimentos dos laboratórios associados. Rapidamente se conclui que esta ajuda não é exclusiva à Ucrânia. Pelo contrário, muitos países em todos os continentes, beneficiaram deste apoio técnico e financeiro. É importante realçar que Portugal faz parte e contribui ativamente para o Global Health Security Agenda, trata-se, portanto, de uma organização multilateral que conta com a participação de vários países.
A ideia de eventuais ataques russos a laboratórios não é descabida. Ao dia de ontem, a OMS reportava 103 ataques a hospitais ou clínicas ucranianas, com 73 mortos e 51 feridos. Serve também de medida para a brutalidade do ataque, pois este ano estão registados 160 ataques em todo o mundo, o que significa que quase 2 em cada 3 ataques a hospitais este ano, ocorreram na Ucrânia. A segunda vítima neste triste ranking é a Palestina, às mãos de Israel, com 17 ataques sofridos. Quem não tem problemas a atacar de forma indiscriminada hospitais e maternidades, certamente também não terá para laboratórios. A recomendação da OMS é certa e cautelosa.
Este ataque à saúde não contribuí para nenhum objetivo militar. Apenas agrava o sofrimento da população civil que se prolongará por vários anos. Este dado, apenas torna a mentira russa mais abominável! Como pode um invasor que destrói infraestrutura civil, incluindo a essencial para a prestação de cuidados de saúde, fingir preocupação com este tema? Com a agravante que explora o natural desconhecimento do cidadão comum sobre armas biológicas e laboratórios. Ao partilhar esta clara desinformação, desvia o foco do verdadeiro problema no terreno: a invasão russa.
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