Durante a pandemia, assistimos a um desenvolvimento tecnológico sem precedentes. Testes para diagnóstico, novos tratamentos e vacinas, foram surgindo a um ritmo nunca antes visto na história da medicina. Para este sucesso, muito contribuiu o financiamento publico. Na União Europeia, este valor ascendeu a mil milhões de euros para investigação, a que se juntam 2.9 mil milhões em ajudas ao desenvolvimento e produção. Não podendo ser ignorado os 30 mil milhões em garantias de compras. Se juntarmos os EUA e Reino Unido, estes valores mais que duplicam.
Trata-se de uma equação sem lógica: a pior pandemia e ameaça de saúde pública da nossa geração, o maior investimento público mundial em saúde, tendo como objetivo, o desenvolvimento de um bem que permite virar a página da pandemia, e o resultado, foi uma profunda desigualdade mundial no acesso às vacinas. Como explicar este falhanço moral às gerações futuras?
Ao dia 2 de maio, apenas 15% dos indivíduos elegíveis para serem vacinados nos países de baixo rendimento, receberam uma dose da vacina contra a Covid-19. Problemas relacionados com a ausência de disponibilidade das vacinas, conjugado com as frágeis cadeias logísticas dos países de menor rendimento, produziram este péssimo resultado para a saúde pública mundial.
Várias medidas têm sido adotadas no sentido de mitigar este problema, tais como, reforçar as capacidades da plataforma Covax, ou o aumento das doações bilaterais. Mas serão sempre insuficientes, pois não abordamos decisivamente a raiz do problema. A causa estrutural da desigualdade mundial no acesso às vacinas, pode ser resumida a dois fatores que se complementam: a falta de fabricantes e a sua concentração nos países de elevado rendimento. Precisamos de encarar de forma séria as causas do problema, caso contrário, estamos apenas a colocar pensos rápidos e a adiar a tão desejada resolução desta iniquidade mundial.
Esta desigualdade não é apenas um problema moral, ou um problema de má negociação de contrapartidas tendo em conta a enorme quantidade de recursos públicos mobilizados. É também um problema económico, pois quem não reduz a suscetibilidade da população terá sempre condicionamentos para evitar o colapso dos seus sistemas de saúde. E é uma péssima decisão do ponto de vista epidemiológico. Não é por acaso que todas as variantes de preocupação, com capacidade para iludir os anticorpos e reinfectar com sucesso, surgiram em sítios poucos imunizados e com elevada circulação viral. As novas variantes BA.4 e BA.5 conseguem facilmente reinfectar quem esteve infetado com BA.2. No princípio da pandemia, a infeção pela variante ancestral conferia uma proteção de 8 meses, agora, temos casos de reinfeção ao fim de 3 meses. Felizmente, sem progressão para doença grave. Mas nunca é demais relembrar, que estamos apenas a uma mutação aleatória, de uma terrível alteração da realidade pandémica.
A OMS é clara nas suas recomendações. Elenca o investimento na criação de uma rede mundial produção de vacinas, com o respetivo fortalecimento das cadeias logísticas, como prioridade para garantir o acesso às vacinas. Esta rede, naturalmente, terá de ser geograficamente dispersa. O que produz enormes benefícios adicionais, nomeadamente, a produção de vacinas para outras doenças, maior investimento em áreas que, regionalmente, necessitam de priorização e o fortalecimento da infraestrutura de saúde pública.
A dimensão da transparência é menos comentada, mas também é um determinante na desigualdade no acesso às vacinas. Enquanto a União Europeia pagava 3,5 dólares por dose da vacina produzida pela AstraZeneca, a África do Sul pagava 5,25 e o Uganda 7 dólares pelo mesmo fármaco. Devido às ineficiências da Covax e ao nacionalismo de vacinas dos países ricos, muitos países pobres foram forçados a contrair empréstimos para financiar a compra de vacinas, incompreensivelmente, a preços superiores aos pagos pela UE ou EUA. Por exemplo, Cabo Verde contraiu um empréstimo de 4.2 milhões de dólares para adquirir 400 mil vacinas, que será pago até 2060. Condenar países pobres, a um aumento da divida pública e menor acesso a vacinas durante uma emergência de saúde pública, não é, de todo, a decisão mais racional e muito menos justa!
Diversificar e dispersar geograficamente a produção de vacinas, também protege a humanidade contra futuras pandemias. Precisamos de uma produção rápida, que chegue rapidamente a todo o mundo sem longas cadeias logísticas. A União Africana lançou um programa que pretende, até 2060, garantir a produção de 60% das vacinas que o continente necessita. Neste momento, este número é apenas 1%. O caminho é longo, mas deve ser apoiado pela UE. Não por caridade, mas por solidariedade. Porque sabemos que é a decisão mais racional, do ponto de vista económico, epidemiológico e moral. Só estaremos totalmente seguros quando todos tiverem seguros!
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