A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG) tem vindo a defender a criação do Dia Nacional da Síndrome do Intestino Irritável, e até lançou uma petição para o efeito. Em entrevista exclusiva ao HealthNews, Armando Peixoto, gastroenterologista no Hospital de São João, defendeu o apelo da SPG e alertou que “muitos dos diagnósticos são atrasados por desinformação das pessoas”, sendo que algumas andam “perdidas entre consultas e exames de diagnóstico que não trazem nenhum resultado produtivo”. Além disso, a síndrome do intestino irritável “associa-se a uma sobrecarga nos serviços de saúde, e há gastos preveníveis”, mas é preciso apostar na sensibilização da população. “É uma questão de saúde pública”, disse o médico.
HealthNews (HN)- O que é a síndrome do intestino irritável?
Armando Peixoto (AP)- A síndrome do intestino irritável caracteriza-se por um conjunto de sintomas com impacto significativo na vida de um indivíduo. Centra-se essencialmente na dor abdominal, que ocorre com uma regularidade bem estabelecida e que se associa a alterações nos hábitos intestinais. As pessoas podem ter mais um padrão de diarreia ou um padrão de obstipação, ou pode haver uma alternância entre eles, mas essas alterações têm de estar associadas a dor abdominal.
Porque é que nós não gostamos de dizer que é uma doença? Porque uma doença exige que tenhamos um mecanismo que possamos explicar, que haja alguma coisa verdadeiramente alterada que seja identificável e que justifique os sintomas aparecerem. O que acontece na síndrome do intestino irritável é que, apesar de termos critérios de diagnóstico, os exames que nós fazemos, que são os exames sumários – nem todas as pessoas têm indicação para fazer todos os exames e depende, também, das queixas que cada um apresenta -, não devem, por definição, apresentar alterações que justifiquem os sintomas.
Por isso, consideramos que a síndrome do intestino irritável é um conjunto de sintomas que incomodam as pessoas no seu dia a dia, têm impacto na qualidade de vida e que devemos tentar melhorar o máximo possível.
HN- Como é que se explica que a maioria dos doentes desconheçam o seu problema e não façam tratamento?
AP- Uma coisa é as pessoas apresentaram sintomas que encaixam numa definição de síndrome do intestino irritável, que acontecem de forma crónica; outra coisa é a valorização que cada pessoa vai fazer desses sintomas e o impacto que esses sintomas têm. Sintomas do tipo síndrome do intestino irritável estão presentes em, pelo menos, 10% da população, sendo que em alguns grupos pode chegar aos 20%. Estamos a falar de muitas pessoas. Há muitos indivíduos que conseguem identificar alguns fatores que aliviam ou agravam os seus sintomas, ou que desencadeiam os seus sintomas, como algum tipo de alimentação, algum tipo de comportamento, algum tipo de excesso. Reduzindo essas situações, conseguem controlar os seus sintomas e, portanto, até deixam de entrar propriamente na definição de síndrome do intestino irritável. Têm sintomas tipo síndrome do intestino irritável, mas não procuram ajuda médica.
Depois, temos aquelas pessoas que têm sintomas graves o suficiente para procurar ajuda médica, porque o problema tem um real impacto no seu dia a dia. Essas pessoas precisam de ajuda, por um lado, para esclarecer os sintomas, porque há as que acham que têm síndrome do intestino irritável, porque estão mais bem informadas, e há outras que acham que têm um cancro, porque qualquer sintoma gastrointestinal as faz pensar nessa possibilidade. Por outro lado, procuram ajuda para que nós, do ponto de vista farmacológico ou não farmacológico, possamos aliviar esses sintomas, e este grupo representa a maioria da população com síndrome do intestino irritável que nos procura.
HN- Quais os tratamentos disponíveis?
AP- Em relação aos tratamentos, existem várias opções. Nós gostamos de entender o tratamento da síndrome do intestino irritável, neste momento, como uma pirâmide, precisamente pela variabilidade nos sintomas, na intensidade dos mesmos e na valorização que lhes é dada. O estabelecimento de uma boa relação terapêutica médico-doente é fundamental, é a pedra basilar na abordagem da síndrome do intestino irritável. Muitas vezes, com a informação adequada, com uma recomendação de alterações do estilo de vida, com a realização de alguns exames que permitem excluir algumas patologias, consegue-se controlar os sintomas. Isto sem termos de fazer terapêutica dirigida. Ou seja, tranquilizar e informar os doentes pode ser suficiente, em alguns casos, para que estes percecionem os seus sintomas de outra forma e aprendam a viver com eles.
Contudo, temos doentes – a maior parte – em que os sintomas persistem e com os quais precisamos de ter uma abordagem adicional, que deverá ser hierarquizada, como se fôssemos subindo uma escada, mas sempre sem esquecer o que sabemos de base de cada doente. A primeira parte será sempre tentar identificar os estilos de vida do doente, procurar alguns erros que possam ocorrer na sua alimentação, promover o exercício físico e o reforço de hidratação, eventualmente suplementação com fibras, bem como a utilização ou não de um probiótico para alterar a microbiota intestinal e, com isso, também melhorar os sintomas. A referenciação para uma consulta de Nutrição pode ser benéfica em alguns casos. Se essas primeiras opções falharem ou se os doentes não melhoram significativamente, habitualmente iniciamos terapêuticas farmacológicas – tratamentos que podem variar de acordo com o tipo de sintomas que os doentes apresentam. Podemos fazer medicamentos mais dirigidos à dor, para tratamento da obstipação ou da diarreia, ou uma conjugação desses fármacos para tentar encontrar um modelo que funcione para o indivíduo que temos à nossa frente.
Há ainda outra abordagem, que eu não diria que deva ser subsequente à falha do tratamento farmacológico, mas sim que deve acompanhá-lo, que é tentar perceber se existe ou não algum fator psicológico – muito frequente na síndrome do intestino irritável e que pode surgir antes ou depois do aparecimento dos sintomas digestivos -, como o stress crónico, a ansiedade ou depressão, a perturbar o doente. Trata-se mesmo de um fator de risco para o desenvolvimento de síndrome do intestino irritável e para o agravamento dos sintomas. Portanto, essa abordagem, que pode ser iniciada na consulta de Gastroenterologia, é fundamental. Muitas vezes até utilizamos medicamentos neuroreguladores para diminuir a dor visceral e controlar o que o sistema nervoso central faz com as informações que recebe do tubo digestivo. Isto porque o cérebro pode interpretar mal os estímulos e fazer a pessoa acreditar que tem uma doença digestiva. Os casos mais graves podem exigir a ajuda de outros profissionais, nomeadamente dos psicólogos e dos psiquiatras, que nos permitem estabilizar a saúde mental do doente e, consequentemente, controlar os sintomas digestivos.
HN- A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia apelou à assinatura de uma petição para o Dia Nacional da Síndrome do Intestino Irritável. Concorda que esse dia seria importante?
AP- É fundamental. Na verdade, nós temos dias para muita coisa, e ainda bem, porque isso permite alertar em relação a determinados problemas que muitas vezes andam esquecidos. Muitos dos diagnósticos são atrasados por desinformação das pessoas, que vão andar preocupadas com o facto de eventualmente terem outro problema de saúde grave, e isso pode gerar ansiedade, quando até pode ser uma preocupação desnecessária.
Também há pessoas perdidas entre consultas e exames de diagnóstico que não trazem nenhum resultado produtivo. Isso passa, muitas vezes, pelo facto de a informação que passa não ser adequada. Por isso, é fundamental que haja uma plataforma que alerte em relação a este diagnóstico, que é tão prevalente. É um diagnóstico muito mais prevalente do que outro tipo de doenças, como as doenças oncológicas ou a doença inflamatória do intestino, que são alguns dos diagnósticos diferenciais que preocupam as pessoas.
Informação adequada, a mostrar a benignidade dos sintomas, a forma como eles podem ser resolvidos e onde é que se deve procurar ajuda médica, é fundamental, não só para o esclarecimento das pessoas e para reduzir a sua ansiedade permanente em relação aos sintomas, como também para reduzir o recurso aos serviços de saúde. A síndrome do intestino irritável associa-se a uma sobrecarga nos serviços de saúde, e há gastos preveníveis, se apostarmos adequadamente na abordagem à população geral. Frequentemente, numa primeira consulta ou em duas consultas, com ou sem exames complementares, é possível fazer o diagnóstico da síndrome do intestino irritável e tranquilizar o doente, que potencialmente, durante o resto da sua vida, não se preocupa mais com aqueles sintomas, ou preocupar-se-á apenas pontualmente.
É uma questão de saúde pública, na verdade, porque saúde pública também é informar a população, para que todos estejam sensibilizados para os sintomas e procurem ajuda médica de uma forma mais adequada, no tempo adequado, junto dos profissionais certos, e possam compreender as estratégias que lhes são definidas nas consultas.
Entrevista de Rita Antunes
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