Recentemente pudemos ler uma entrevista do Dr João Rodrigues, (coordenador do grupo para a reforma dos Cuidados de Saúde Primários), concedida a um outro Jornal.
A reforma de 2005, na verdade com longo processo de maturação, propôs então um papel central para a governação clínica nas unidades funcionais, atribuindo-lhes responsabilidades técnicas e capacidade, independentes do processo gestionário dos Agrupamentos de Centros de Saúde.
O acontecimento mais marcante foi a constituição das Unidades de Saúde Familiar (USF): equipas multidisciplinares livremente constituídas e organizadas, prestando cuidados médicos e de enfermagem personalizados a um conjunto de pessoas, agrupadas em listas de utentes por médico de família!
Esse percurso de evolução, com cerca de 35 anos, logrou consolidar um Serviço Nacional de Saúde (SNS), financiado por impostos e cobrindo a totalidade da população com uma rede de centros de saúde e hospitais por todo o território… e cumpriu os objectivos constitucionais!
Essa entrevista justifica alguns comentários.
Em primeiro lugar porque esta reforma já foi. É ridículo insistir e fazer o aproveitamento de algo que foi desvirtuado e manter esse discurso anula o significado de “reforma”!
No escrever e bem de André Biscaia e Liliana Heleno, uma reforma “portuguesa, moderna e inovadora. (…) Cumpriu o objetivo de uma reforma: conseguiu melhorias com maior satisfação de todos e ganhos em saúde.” (1)
Depois e em segundo lugar, o problema da vergonha nacional do SNS.
O Dr João Rodrigues reconhece que há mais de 1.1 milhões de portugueses sem médico de família e não traça qualquer compromisso imediato para a resolução do problema. Mais, quando o número de profissionais médicos anunciado pelos sucessivos ministros de António Costa continua a subir…
O que falta é só capacidade gestionária e organizacional?
A questão é a das reformas em massa dos médicos?
Mas continuamos a manter um regime excepcional de contratação de médicos em aposentação e o planeamento previsional das reformas dos médicos é conhecido mesmo desde antes do governo de Passos Coelho!
Terceiro ponto – pasmo com a passividade do Dr João Rodrigues e da inacção reivindicativa concertada de Sindicatos e Ordens, habituado que estava à atenção e exigência que dedicavam ao tema dos Cuidados Primários anos antes.
Sendo o Dr João Rodrigues o coordenador do grupo dos CSP (deixo cair a reforma que já faleceu…) esperava-se bem mais, tanto mais que adquiriu experiência e curriculum do lado das USF e das ARS como vice-presidente.
Naturalmente é sempre mais fácil ser-se teórico do que executivo, mas tudo tem um preço.
Claro que na leitura da entrevista percebe-se como o peso e as dificuldades com os recursos humanos justificam a correspondente prioridade. Mas este aspecto nem é novo nem é original.
Foi e será sempre o problema de qualquer área da Administração Pública, quer o Ministro das Finanças se chame Vitor Gaspar, Maria Luís Albuquerque, Mário Centeno, João Leão ou Fernando Medina.
Um quarto ponto que deveria ser de ensinamento à modéstia.
Basta de anúncios sucessivos, bem-intencionados certamente, mas impraticáveis e longe de assumirem o carácter de universalidade que o SNS obriga e implica. Refiro-me aos laivos de demagogia nos planos das consultas dentárias, das espirometrias, das consultas de psicologia ou de nutrição e agora, dos centros de diagnóstico integrado que, o entrevistado classifica e bem de “muito pouco”, “é tudo muito precário” e “estamos praticamente a zero”.
Finalmente, nova surpresa e quinto ponto de comentário.
Falo da resposta à pergunta sobre as linhas-mestras do programa do grupo que o Dr João Rodrigues lidera. Lê-se como primeira frase, “… estamos à espera do novo governo para decidir se o nosso trabalho deve continuar ou não”.
Decididamente não reconheço nesta resposta a irreverência mental, a inovação operacional ou a estratégia política que os CSP precisam para se revigorar e não morrerem às mãos de outro grupo que, na área do Ministério da Saúde, foi constituído pelo Despacho n.º 11343/2021 e recentemente “revalidado” e com prazo de expiração prolongado…
Curiosamente mais um Grupo Técnico de apoio à revisão do modelo de organização e funcionamento das Unidades de Saúde Familiar que, por acaso, também inclui o Dr João Rodrigues…
- Biscaia A, Heleno L. Ciênc. saúde colet. 22 (3), Mar 2017. https://doi.org/10.1590/1413-81232017223.33152016
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