Pandemia expande poderes dos ‘comités de bairro’ na China

23 de Julho 2022

Todos os dias, Yang Zi tem que estar em casa antes da meia-noite, não por ordem dos pais, mas por ordem do Comité de Bairro, as organizações de base do Estado chinês cujos poderes expandiram-se durante a pandemia

“Quando chego depois da meia-noite, o portão está trancado”, descreve à agência Lusa a chinesa, de 25 anos. “Tenho que ficar em casa de uma amiga”, conta.

As medidas de prevenção epidémica da China são as mais restritivas do mundo, ao abrigo da política de ‘zero casos’ de covid-19. A estratégia inclui o isolamento de todos os casos positivos e contactos próximos, o bloqueio de bairros ou cidades inteiras e a realização de testes em massa, quando são detetados surtos.

Os Comités de Bairro foram criados como “organizações civis de base”, na década de 1950, e constituem atualmente o nível mais baixo da burocracia chinesa, em que o Partido Comunista Chinês confia para difundir diretrizes e propaganda a nível local, e até mesmo para a resolução de disputas pessoais.

Benjamin Read, autor do livro “Roots of the State”, define os comités como a “raiz do Estado chinês”, enquanto organizações que se “aproximam da sociedade (…), sustentando o regime repressivo” da China.

A mobilização destas organizações como os “guardiões das comunidades” no combate da China contra a covid-19 resultaram em medidas arbitrárias, e muitas vezes contraditórias, face às diretrizes emitidas pelas autoridades de saúde.

No caso de Yang Zi, por exemplo, não existe qualquer diretriz que dite o encerramento de bairros dentro de um determinado horário. A Agência Lusa não conhece outro bairro em Pequim que adote uma medida semelhante.

A decisão de trancar os portões do bairro, entre a meia-noite e as seis da manhã, foi adotada pelo Comité de Bairro sem consultar os residentes, em maio passado, quando Pequim enfrentava um surto de covid-19 que causou algumas centenas de casos, e assim permaneceu, mesmo depois de a cidade ter retomado a normalidade.

Os comités tornaram-se alvo de fortes críticas, sobretudo durante o bloqueio altamente restritivo de Xangai, entre abril e junho.

Em alguns casos, moradores entraram em confrontos com funcionários que negaram o acesso a bens básicos, incluindo água potável, com a justificação de que pudessem transportar o vírus. Imagens de cães e gatos, cujos donos testaram positivo para a doença, a serem mortos por funcionários que temiam que também os animais de estimação estivessem infetados, chocaram a mais cosmopolita e moderna cidade da China.

No início de junho, mesmo após as autoridades terem anunciado a reabertura da cidade, alguns dos comités continuaram a proibir os moradores de saírem de casa.

“Senti-me sem esperanças”, contou à agência Lusa uma residente na cidade, que esteve sob confinamento total durante 62 dias. “Um grupo de pessoas que nem sequer têm educação subitamente passou a ter o poder de decidir sobre a minha liberdade”, resumiu, sob anonimato.

Esta semana, as autoridades da cidade de Cantão, no sudeste da China, pediram desculpa por terem forçado a entrada em casas particulares, à procura de contactos diretos de pacientes de covid-19 que pudessem estar escondidos.

Funcionários dos comités de bairro do distrito de Liwan arrombaram as fechaduras e entraram em 84 casas no dia 10 de julho, depois de contactos próximos de pacientes com covid-19 terem sido encontrados escondidos em casa, alguns dos quais testaram positivo mais tarde, segundo a imprensa estatal chinesa.

Para o jornal oficial do Partido Comunista Chinês Global Times, no entanto, é a “governação de base” oferecida pelos comités que “dá ao povo chinês um sentimento de pertença e segurança”.

“O trabalho oportuno, cuidadoso e dedicado dos membros dos comités de bairro ajudou, sem dúvida, a que as medidas de quarentena fossem devidamente implementadas e a minimizar o movimento das pessoas, contendo efetivamente a propagação do vírus”, enalteceu a jornalista Wang Wenwen, numa reportagem sobre estas organizações.

NR/HN/LUSA

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