Uma reforma “profunda e estrutural” do sistema de saúde é defendida pelo professor catedrático na Universidade do Porto. Apesar de querer “afirmar a profissão médica” em Portugal, Rui Nunes recusa transformar a ordem numa entidade sindical.
HealthNews (HN)- Por que razão gostaria de assumir a liderança da ordem?
Rui Nunes (RN)- Decidi protagonizar esta candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos por várias razões. Apesar de os médicos terem tido um comportamento exemplar durante a pandemia, onde estes profissionais com muito empenho e sacrifício disseram sempre ‘presente’ nos momentos difíceis, a verdade é que há um sentimento geral de que esse reconhecimento não está a existir. Portanto, um dos meus compromissos é precisamente afirmar novamente a profissão médica. Aquilo que é dado a conhecer aos portugueses é que os problemas graves de que o sistema de saúde padece são por causa dos médicos e até da própria Ordem dos Médicos. Portanto, passamos de ser uma profissão exemplar durante a pandemia, para os principais responsáveis por aquilo que o sistema de saúde tem de mal e pelas falhas de governação. Importa, assim, afirmar a profissão médica, não numa perspetiva elitista e muito menos corporativa, mas para conscientizar as pessoas de que se não tivermos médicos bem preparados, motivados e reconhecidos vai ser complicado prestar bons cuidados de saúde.
HN- Defende uma “reforma profunda” do sistema de saúde. Como pensa alcançar essa mudança? Quais as suas propostas?
RN- Penso que a minha candidatura tem esta marca distintiva em relação a outras candidaturas porque os princípios e valores pelos quais me bato há muitas décadas pressupõem uma forte unidade da classe médica. Alias, “Afirmar e Unir” é o mote da minha candidatura. E para isso acontecer é essencial que se proponha com clareza uma reforma profunda e estrutural do sistema de saúde. Em Portugal não há falta de recursos humanos, o que é preciso é uma nova visão que coloque os doentes no centro do sistema e um sistema que se adapte às necessidades das pessoas.
HN- A carreira médica tem sido um dos aspetos mais abordados por parte dos restantes candidatos que salientam que não é revista há 13 anos. Considera que a Ordem tem feito tudo o que está ao seu alcance?
RN- As carreiras são o mais potente estímulo à qualificação profissional dos médicos. Isto é, sem carreiras bem estruturadas é difícil concretizar determinados objetivos. É preciso repensar as carreiras médicas e isto prende-se não apenas com o passo profissional, mas também com a dignificação do exercício profissional.
Manifesto total oposição à proposta de contratar médicos sem especialidade para assumir a função de médicos especialistas. Não podemos dizer que vamos recriar o sistema de saúde sem apostar nas carreiras médicas. Devemos apostar na qualificação e na formação profissional. É importante salientar que a qualidade da medicina portuguesa é reconhecida internacionalmente e isso deve-se à excelência da formação pré-graduada, assim como à excelência da formação em exercício durante as carreiras profissionais.
No fundo, é preciso ter ideias e contributos para que o poder Executivo as implemente com vista a atingirmos os objetivos que todos preconizamos.
HN- Atualmente o país assiste a uma crise na saúde, em que a falta de médicos é transversal a todas as áreas. Para si, quais são os problemas de base?
RN- O problema de base é o modelo de governação ético-social da saúde. Como todos sabemos, e dados internacionais comprovam, Portugal tem uma capacidade formativa muito elevada e, em termos absolutos, temos mais médicos por mil habitantes que a generalidade dos países civilizados. O problema está apenas na ausência de médicos em determinadas especialidades e em determinados pontos do território nacional. Isso colmata-se com uma plena articulação entre a Ordem dos Médicos, os colégios de especialidade e do Ministério da Saúde. É preciso que se promovam medidas de retenção dos médicos no SNS. Quando se diz que há falta de médicos na área da Obstetrícia, não é porque haja falta de profissionais a querer seguir esta especialidade, mas porque existe um sistema que não é apelativo para que os jovens médicos queiram trabalhar dentro do SNS. Este tem de ser reinventado nas suas próprias raízes.
HN- Até agora tem existido uma forte dependência dos prestadores de serviços nas urgências. Acredita que com o novo regime de pagamento das horas extraordinárias foram criadas condições para ter mais profissionais de forma estável no SNS?
RN- O pagamento de horas extraordinárias é uma solução conjuntural para resolver um problema estrutural. Portanto, temos que ter um olhar completamente diferente para os serviços de urgência e reforçar as áreas que têm maior necessidade, como é o caso da Medicina Interna, a Cirurgia Geral, a Obstetrícia, a Pediatria, entre muitas outras.
O problema é sempre o mesmo, é uma questão de gestão, organização e de atratividade dos quadros médicos. Sem uma alteração de fundo vamos ter que encontrar soluções pontuais e o novo regime de pagamento das horas extraordinárias terá o seu impacto no curto prazo.
HN- Até porque é uma medida transitória que vigora até janeiro de 2023…
RN- Exatamente. Não ponho em causa que as medidas transitórias tenham o seu impacto, mas considero que é preciso um novo olhar sobre o sistema de saúde para que não estejamos periodicamente a verificar estes problemas que já sabíamos que existiam e que continuam a existir.
HN- A dificuldade do acesso à profissão é um tema que ainda muitos portugueses não conseguiram compreender. Enquanto a ordem diz que não coloca nenhuma barreira, já ouvimos alguns políticos a dizerem o contrário. Afinal quem é o responsável pelo acesso à profissão?
RN- A Ordem dos Médicos é uma autoridade com poderes públicos delegados pelo Estado e que tem funções de regulação técnica e deontológica. Nesse sentido, tem uma missão de regular o acesso à profissão. Quando um médico graduado em Medicina vem de um país estrangeiro com certeza que a ordem terá que se pronunciar sobre a matéria. Diferente é quando se trata do acesso dos nossos graduados. Quando estes terminam o curso, ingressam na profissão e podem concorrer à formação específica. Portanto, a posição da ordem não tem sido restritiva nessa matéria, bem pelo contrário… O que tem havido é falta de capacidade do poder Executivo para planear estrategicamente as necessidades de médicos das diferentes especialidades. Atribuir essa responsabilidade à Ordem dos Médicos parece-me um equívoco e um exagero. Como o atual bastonário tem dito recorrentemente, as capacidades formativas por especialidade que a ordem propõe têm sido sempre superiores às vagas que são abertas. Quem decide é o poder Executivo, não é a Ordem dos Médicos. Portanto, é estranho que o poder Executivo se confronte há décadas com este problema.
HN- O Estatuto do Serviço Nacional de Saúde já é conhecido. Como olha para a criação de uma Direção Executiva?
RN- Tenho sérias reservas sobre a Direção Executiva. Aliás, numa opinião pública que emiti há uns dias, estive em completa consonância com a posição do Presidente da República. Há um problema de fundo e uma contradição. Não se percebe a razão para criar uma Direção Executiva porque se não, para que serve o responsável pelo Ministério da Saúde. Portanto, a Direção Executiva, por definição, tem que ser o ministro da tutela até para prestar contas do exercício executivo na área da saúde. Por outro lado, esta Direção Executiva acaba por contradizer aquilo que tem sido defendido sobre a necessidade de descentralizar a Saúde. Toda a evidência técnica demonstra que o nosso sistema de saúde devia ser mais descentralizado e está a acontecer exatamente o aposto. Estou convicto que, ao longo dos anos, se vai demonstrar que não é uma boa solução. Tenho muito receio que seja uma medida contraproducente que em vez de melhorar o desempenho e qualidade de gestão do sistema de saúde, venha a ter um efeito perverso e que contradiga a evolução que penso que é necessária.
HN- Defende que a saúde precisa de uma gestão mais autónoma, sendo que o novo estatuto do SNS prevê mais autonomia dos hospitais e centros de saúde. Vê esta medida como claro sinal de mudança?
RN- Veria se fosse compaginado com outras mudanças nesse sentido. Ou seja, se em vez de se criar uma gestão central do sistema de saúde, se criassem e implementassem sistemas locais de saúde de forma generalizada e com maior autonomia. Seria um passo excelente.
Por um lado, diz-se que se vai aumentar a autonomia de gestão, mas por outro, centraliza-se a governação. Portanto, não percebo como é que estas medidas podem ser compatíveis.
HN- O que iria mudar na Ordem dos Médicos consigo na liderança?
RN- Apesar de considerar que a Ordem dos Médicos teve um papel absolutamente decisivo e central na saúde dos portugueses ao longo dos últimos anos, e sobretudo durante a pandemia, a verdade é que estamos a entrar num novo ciclo e que tem de gerar mudanças. Caso seja venha a ser eleito bastonário, os médicos podem esperar um papel mais ativo: no reconhecimento da profissão médica e na colaboração com o poder Executivo para mudar o sistema de saúde. Não preconizo uma Ordem do Médicos que queira substituir-se ao poder Executivo e muito menos que queria ter funções sindicais.
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