Alexandre Lourenço: “evolução no sentido de terminar com as ARS é o caminho certo”

04/01/2023
"Demasiadas vezes, as ARS foram mais um nível burocrático a ultrapassar do que um órgão útil de gestão. Portanto, esta evolução no sentido de terminar com as ARS vai no caminho certo", aponta o especialista

“O Serviço Nacional de Saúde tem de se transformar”. A chegada da DE-SNS tem contribuído para isso. “O grande desafio que temos em mãos é a transformação do Serviço Nacional de Saúde em função das necessidades de cada um dos seus cidadãos, à semelhança do que outros serviços de saúde estão a fazer, e outros setores já iniciaram. Relativamente à extinção da PPP diz que ouve imprudência e falta de preparação do processo”. Algumas ideias transmitidas em entrevista exclusiva ao healhtnews por Alexandre Lourenço, Administrador Hospitalar e Professor na Escola Nacional de Saúde Pública que nos últimos anos muito contribuiu para a definição de uma estratégia de reforma do SNS.

HealthNews (HN) – A menos de completar três meses de exercício, a direção executiva do SNS mostra grande ímpeto reformador. É possível neste momento fazer um balanço indicativo disto? Considera que começou com o pé direito?

Alexandre Lourenço (AL) – Acima de tudo, creio que entrámos numa nova etapa do Serviço Nacional de Saúde (SNS), e isso é evidente pela iniciativa e sentido de urgência criados pelo Professor Fernando Araújo e pela sua equipa, e naturalmente também pelo suporte e ação da equipa ministerial. Os passos dados têm sido positivos. Passos que muitas vezes até nem são percetíveis – a verdade é que não é expectável que a gestão do SNS seja feita na praça pública. Creio que tem sido feito um grande esforço, em conjunto com os profissionais, para encontrar as melhores soluções para o SNS.

HN – E que avanços têm sido esses?

AL – Primeiro que tudo, a criação de um ambiente saudável, que tem permitido o diálogo entre várias partes. Algo que há algum tempo estava interrompido. Creio que se está no bom caminho, tendo em consideração que os desafios que o Serviço Nacional de Saúde enfrenta são de tal ordem que não é expectável que sejam completamente resolvidos no curto e médio prazo.

HN- Tendo em conta estes desafios, quais são para si as principais prioridades?

AL- O Serviço Nacional de Saúde tem de se transformar. Durante muito tempo, pelo menos alguns quadrantes, têm defendido que o Serviço Nacional de Saúde deve manter-se como existe atualmente. Ora, um serviço público como o SNS precisa evoluir; nunca cristalizar.

HN – Não é isso que tem acontecido?

AL – Em muitos aspetos o Serviço Nacional de Saúde tem estado distanciado das necessidades individuais das pessoas e tem respondido essencialmente a questões de natureza interna; de conveniência interna, revelando uma enorme resistência em evoluir para conseguir suprir as necessidades individuais dos cidadãos: dos doentes, das famílias e da população, de uma forma mais genérica. Por exemplo, no acesso.

O grande desafio que temos em mãos é a transformação do Serviço Nacional de Saúde em função das necessidades de cada um dos seus cidadãos, à semelhança do que outros serviços de saúde estão a fazer. E à semelhança, até, do que outras áreas de serviços no nosso próprio país fizerem, como a banca, o setor do retalho – que evoluíram muito em função da conveniência dos seus utilizadores. O SNS deve proceder a esta transformação, evidentemente em parceria com os profissionais.

HN – Como atrair os profissionais?

AL – É mais um grande desafio, diria eu que intermédio: o de engajar os profissionais de saúde neste processo de mudança. Dar um propósito ao Serviço Nacional de Saúde permite ter equipas mais motivadas, e creio que esse propósito está a ser procurado. Ou seja, prestar melhores cuidados de saúde à população é um propósito do Serviço Nacional de Saúde. O propósito não é manter o Serviço Nacional de Saúde como existe. Oferecendo um propósito aos seus profissionais pelo menos uma componente relevante da motivação é assegurada. Creio que é isso que o Governo e a Direção Executiva têm vindo a tentar fazer ao longo dos últimos meses.

HN- Apesar disso, a verdade é que diariamente chegam-nos situações de crise que afetam o setor. A que se deve este aparente agravamento da situação, que leva muitos a afirmar que o SNS se está a afundar?

AL- Eu não seria tão drástico. Creio que o SNS enfrenta hoje os mesmos desafios que os outros sistemas de saúde de países desenvolvidos. Evidentemente que num ambiente bastante complexo, agravado não só com questões de evolução demográfica e epidemiológica, mas, também, com a rigidez do seu próprio modelo de gestão. Não podemos esquecer que o SNS, particularmente desde 2010 – ou até um pouco antes –, enfrentou uma grave crise financeira. Não podemos descurar que, em 2012, estaríamos a falar de um orçamento inferior a 8 mil milhões de euros. Hoje, a autorização de despesa ultrapassa os 14 mil milhões de euros.

Mas não podemos escamotear, o SNS enfrenta problemas estruturais e operacionais gigantescos que confluem nas notícias a que vamos ouvindo todos os dias. E quem vive no setor vê ainda mais do que isso, porque muitas vezes estas notícias são apenas a “ponta do iceberg”. Isto decorre da incapacidade dos últimos 10/15 anos de se fazerem transformações no setor. As últimas duas grandes reformas foram a criação da rede de cuidados continuados integrados e a reforma dos cuidados de saúde primários. Já lá vão mais de 15 anos. Portanto, há uma incapacidade de reformar e de perceber que o SNS tem de evoluir em função das alterações sociais e necessidade concretas da população. A realidade de 2023 é distinta da de 2005. O mundo mudou substancialmente e o SNS não conseguiu acompanhar estas mudanças. Por outro lado, as expectativas das pessoas são hoje bastante mais exigentes.

Esta capacidade para mudar advém de uma incapacidade para garantir qualidade de gestão do sistema e de cada unidade de saúde. Por exemplo, se compararmos a gestão que existia ao nível das parcerias público-privadas, muitas delas com gestores com experiência no setor público, por exemplo o caso de Braga ou Loures, percebemos que os instrumentos à disposição destes gestores são completamente diferentes das dos gestores que estão nos hospitais de gestão pública direta do Estado – e isto, evidentemente, redunda em resultados diferentes.

HN – E quando passam de PPP para EPE, tudo piora…

Notámos uma diferença enorme, que depois se vai repercutir na capacidade de resposta dessas instituições. Isso deve-nos fazer pensar sobre a falta de instrumentos de gestão nos hospitais de gestão direta do Estado.

HN- Creio que os cidadãos não sabem se a experiência das PPP resultou ou não em melhorias em termos económicos para o Estado.

AL- Do ponto de vista técnico, é evidente que teve vantagens económicas, tal como de acesso para as populações servidas. Relatórios independentes, como do Tribunal de Contas, ou de algumas instituições académicas, demonstram isso claramente. Durante o período que tive a responsabilidade na gestão, a nível nacional, dos contratos PPP, constatei que o Estado estava a gastar menos do que com a gestão direta. Qualquer contrato PPP só é assinado se os candidatos à gestão dessas parcerias apresentarem custos inferiores à da gestão direta – comparador público. O objetivo foi sempre ter custos inferiores à gestão direta do Estado e isso foi garantido quando essas PPP foram adjudicadas e, posteriormente, durante a gestão dos contratos.

HN- Confrontado com todas estas situações de crise de que falámos, o senhor ministro veio a público rejeitar a existência de contestação devido ao encerramento das urgências, pelo menos no caso de Loures. Como é que vê esta aparente contradição, quando as notícias mostram o contrário, com protestos até por parte das autarquias envolvidas, algumas exigindo mesmo – como a de Loures – o retorno à PPP?

AL- Todo o processo tem pouca racionalidade. Era essencial ter considerado um período de transição adequado das parcerias para a gestão pública direta do Estado, reconhecendo também que, porventura, deviam ter sido dados às novas equipas de gestão pública os mesmos instrumentos da gestão privada. No hospital de Loures, a transição decorreu em pouco mais de um par de semanas.

HN- Como é que se explica isso?

AL- Houve muita imprudência. O Estado demonstrou uma grande impreparação, que depois repercutiu-se na capacidade de resposta e qualidade dos cuidados prestados à população.

HN- O diretor executivo do SNS afirmou na Comissão Parlamentar de Saúde que até ao final do ano as ARS seriam extintas, que as suas funções operacionais serão transferidas para as ULS e as funções de planeamento e organização para a direção executiva. Não se estará aqui a criar uma super ARS?

AL- Creio que esta decisão decorre do conhecimento que tem vindo a ser adquirido ao longo dos últimos anos. As Administrações Regionais de Saúde demostraram, ao longo dos anos, uma incapacidade de coordenação do setor hospitalar e dos cuidados de saúde primários por múltiplos fatores.

Houve uma quase incapacidade de comunicação entre os cuidados de saúde primários e os hospitais ao longo de todos estes anos, apesar de estarem sob coordenação de uma entidade única, de natureza regional. Demasiadas vezes, as ARS foram mais um nível burocrático a ultrapassar do que um órgão útil de gestão. Portanto, esta evolução no sentido de terminar com as ARS vai no caminho certo.

Parece-me que o objetivo aqui é garantir coordenação nacional e melhores serviços de proximidade através de unidades descentralizadas no seio das comunidades, como as Unidades Locais de Saúde, que vão garantir integração de cuidados. Na minha opinião, isto é positivo, uma vez que é necessário avançar como um modelo de gestão de base populacional em que exista um elevado conhecimento dos atores locais. O espaço de saúde não se resume a hospitais ou a centros de saúde. Abrange também as próprias autarquias, o setor social, a educação, etc. É preciso ter unidades geográficas mais pequenas, mais próximas, que permitam garantir essa integração de cuidados e adequar os serviços às necessidades de cada população. A transformação do SNS vai ocorrer no desenho de respostas locais adequadas às necessidades de populações específicas.

HN- Não existe nenhum estudo que demonstre inequivocamente que a integração vertical de cuidados – que resulta das ULS – resultaria na melhoria dos cuidados de saúde, mas parece ser essa a opção da direção executiva. Como se explica esta divergência?

AL- Eu responderia de uma forma inversa: também não há demonstração de que os outros modelos funcionem melhor. A gestão de serviços de saúde é um exercício evolutivo e depende muito da capacidade técnica e do apoio que estas organizações têm para exercer as suas funções. Não podemos esquecer que o grau de apoio e de preparação que foi dado aos conselhos de administração que estão à frente destas organizações foi muito limitado. Aliás, existem erros de base que me parecem evidentes, como a separação da direção clínica (ter uma direção clínica para os cuidados de saúde primários e uma direção clínica para os cuidados hospitalares). Perpetua este modelo de fragmentação da gestão clínica dos doentes.

No caso da ULS de Matosinhos, por exemplo, temos evidência de melhor gestão e de melhores resultados em saúde, mas em outras Unidades Locais de Saúde não vimos profundas melhorias face ao modelo de organização convencional. Mas isso decorre também desta incapacidade que o próprio Estado teve para preparar e apoiar estas administrações (conselho de administração, gestão intermédia e os próprios profissionais) para uma transformação no modelo organizacional. Isso não foi feito. Aliás, há vários estudos publicados, nomeadamente do Professor Rui Santana da Escola Nacional de Saúde Pública, que dão nota de existir uma integração de natureza mais formal, legal e administrativa, mas uma grande incapacidade para promover uma integração da gestão clínica, perpetuando todos os modelos anteriores. É aqui que devemos trabalhar. A direção executiva vai ter de apoiar estas novas entidades, para promover uma gestão clínica integrada – algo que não foi feito nos últimos 20 anos e que estava muito dependente da iniciativa das próprias organizações. Este modelo, para ter sucesso, exige uma capacidade de gestão da mudança, de lideranças clínicas, que têm de ser criadas. Elas não brotam do chão. Têm de ser criadas e promovidas, monitorizadas, e apoiadas. É aí que me parece que o papel da direção executiva será essencial, certamente em conjunto com outros parceiros, que devem promover essa integração. Repare que, pedimos as ULS assegurar funções bastante mais complexas que aos cuidados de saúde primários e hospitais isolados. O exercício destas novas funções, exige suporte e apoio técnico.

HN- Para lá da gestão clínica, vemos também que as ULS estão como as demais instituições em questões financeiras.

AL- Se não dermos apoio à gestão destas novas organizações, se não lhes dermos autonomia de gestão e um quadro de funcionamento que permita tomar decisões, elas estão votadas ao fracasso. Se estas organizações tiverem de pedir autorização ao Ministério das Finanças de cada vez que precisarem de contratar um assistente operacional, ou se de cada vez que tiverem de fazer uma compra plurianual precisarem de uma portaria de extensão de encargos, é evidente que estão votadas ao fracasso. Este tipo de organizações precisa de agilidade e de se adaptar às necessidades da população que servem. Essa é a sua mais-valia: trabalhar com organizações não-governamentais, com autarquias, com o setor social. Para isso, é preciso agilidade.

Não podemos querer que a Unidade Local de Saúde do Nordeste Transmontano tenha as mesmas características que a de Setúbal. E é evidente que isto vai exigir grande flexibilidade e capacidade de acompanhamento da gestão destas organizações; mas, essencialmente, uma melhor capacitação da gestão e instrumentos de gestão para estas organizações. Perpetuar o modelo vigente não vai resultar.

HN- Tendo em conta que o atual diretor executivo não decidirá no que respeita a recursos humanos e dinheiro, acha que ele terá força suficiente?

AL- Não podemos dizer que o Serviço Nacional de Saúde tem pouco financiamento. Como eu disse há pouco, temos uma autorização de despesa de mais de 14 mil milhões de euros. O grande problema é se a despesa está a ser realizada de uma forma eficiente ou se os instrumentos de gestão disponíveis estão a gerar desperdício. Não acredito que o Professor Fernando Araújo aceite estar à frente da direção executiva sem condições para fazer um bom trabalho. Creio mesmo que tem todas as condições para realizar esse trabalho, e até o apoio do Governo como um todo. E acredito também que o papel que é hoje atribuído à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) será no futuro, porventura, mais focado nas áreas de planeamento e controlo financeiro, e não tão interventivo ao nível da gestão operacional.

HN- Voltando às PPP, o senhor ministro explicou que foi por recusa legítima dos privados em manter o contrato que estas acabaram. Isto é mesmo assim?

AL- São vários temas. Os contratos PPP têm duas componentes, uma infraestrutural e outra clínica. A infraestrutural com um prazo de 30 anos, que se mantém em vigor, e a clínica, por um prazo de 10 anos, findo o qual poderá ser renovada ou ser lançado um novo concurso, com preço base e contrato atualizados. Ou então voltar para a gestão direta do Estado. As negociações com os parceiros do setor privado foram feitas de uma forma abrupta e, porventura, já fora de tempo. Foi pedido aos parceiros privados para prolongarem (o caso de Loures será o mais evidente) o contrato por mais um ou dois anos. O parceiro privado, que, creio eu, estava a perder dinheiro – no caso de Loures – nessas circunstâncias não teria interesse, a que acrescia o facto de desconhecer o que iria acontecer no futuro após o fim da extensão do contrato. Ou seja, não foi proposta uma renovação negociada ou lançado um novo concurso.

HN – Houve desinteresse por parte dos privados?

AL – Não sei se existiu desinteresse dos privados As parcerias público-privadas constroem numa lógica de confiança mútua. Era expectável que o Estado, a dois ou três anos do final dos contratos, dissesse aos parceiros o que faria. Fosse uma transição para a gestão direta, renovação negociada dos contratos, ou o lançamento de um novo concurso.

A meu conhecimento, nos casos de Braga e Vila Franca de Xira, o Estado decidiu terminar os contratos de gestão clínica. No caso de Loures, quando foi tomada a decisão de lançar um novo concurso, e se percebeu que não existia tempo para o fazer antes do contrato terminar, pediu-se ao parceiro privado para estender os contratos por uma par de anos até ser finalizado o novo concurso. Sendo esta a decisão, o Estado não teve capacidade para lançar o processo contratual em tempo devido.

No caso da da PPP de Cascais, o parceiro privado aceitou estender o contrato na expetativa de se apresentar ao novo concurso — algo que acabou por não acontecer. Nesta única PPP em funcionamento, temos agora um novo operador

Portanto, creio que foi um pouco de falta de planeamento e preparação na gestão de todo este processo, sabendo que estamos a falar de contratos muito importantes para assegurar cuidados de saúde e de valores financeiros muito elevados. Para serem viáveis é essencial garantir a confiança das partes.

HN- O que é que atropelou este processo todo que me está a relatar? Foi uma questão ideológica ou foi apenas desleixo?

AL- Creio que foi a coexistência de uma não decisão por algum tempo e de um grau elevado de impreparação para gerir o processo.

HN- Passemos às urgências. A sua reorganização implicará o encerramento prolongado de algumas?

AL- Muitas vezes as decisões mais corretas e adequadas não vão ao encontro das expectativas das pessoas. E a verdade é que os serviços de urgência e as maternidades têm um grande impacto na perceção das pessoas em relação aos serviços de saúde. E muitas vezes o encerramento, mesmo de um mau serviço, causa um impacto grande na perceção que a população tem. Dou um exemplo: hoje, no SNS, realizamos o dobro das cirurgias que realizávamos há quinze anos, mas continuamos a dizer que temos grandes dificuldades. Estamos a realizar o dobro de cirurgias, mas as pessoas dizem que continuamos a ter listas de espera inaceitáveis e que o SNS não faz o suficiente.

Nestas matérias, muitas vezes, há uma dissociação entre o que é a expectativa e os anseios da população e as respostas mais adequadas. O que está a ser feito é, do ponto de vista da direção executiva, um esforço muito grande para garantir que os serviços de urgência conseguem prestar cuidados em segurança e qualidade, e de não criar alarme social ou uma desconfiança da população face aos serviços públicos de saúde. Isso passará muito, pelo menos numa primeira etapa, por concentrar os serviços de urgência até serem encontradas soluções mais de médio-longo prazo para resolver os problemas relacionados com os recursos humanos, que atualmente são uma área das deficiências visíveis no funcionamento dos serviços públicos.

HN- Tem sido defendido, até pela própria tutela, a generalização do modelo B a todas as unidades dos cuidados de saúde primários. Tem-se avançado até com prazos: até ao final do ano, disse o ministro. Considera possível tal trajetória em termos financeiros e de operacionalização?

AL- Há que primeiro proceder-se a uma revisão das componentes remuneratórias das USF modelo B. Ou seja, o modelo em si, provou ser bom, mas passados 15 anos, é imperativo rever o modelo de incentivos. Aliás, era expectável que fosse atualizado de três em três anos. Faz sentido manter as USF modelo B e alargar o modelo, mas também fará sentido rever o modelo de incentivos.

Por exemplo, a resposta ao doente agudo por parte das USF. Esta componente é essencial para que reduzir a pressão sobre os serviços de urgência. Estamos a falar quer de resposta através de consulta presencial, quer de resolução de problemas através de chamada telefónica ou vídeo. Estas componentes têm de ser integradas no modelo.

Um dos indicadores para as USF era a possibilidade de se ter uma consulta para um problema agudo em menos de 48 horas, e isso está hoje longe de acontecer. Isto cria desconfiança na população sobre a capacidade resolutiva das USF, levando a uma procura desnecessária aos serviços de urgência.

HN- Estava-me a dizer há pouco que uma melhor organização dos cuidados de saúde primários permitiria atenuar um pouco o impasse que agora se vive em termos de urgências hospitalares. A verdade é que os dirigentes da Associação dos Médicos de Família dizem que não é por aumentar o horário dos centros de saúde que se vai resolver o problema das urgências. Concorda com esta perspetiva?

AL- Não é a única solução, evidentemente. Os cuidados de saúde primários (CSP) precisam de evoluir, criando serviços de maior conveniência para os cidadãos, porque os cidadãos também esperam isso. Os prestadores privados oferecem serviços de cada vez maior “conveniência”, e a verdade é que muitos cidadãos acabam por fazer essa opção em detrimento dos serviços públicos.

Os cuidados de saúde primários são a face visível e a porta de acesso ao SNS. Têm de evoluir numa lógica de qualidade de serviço e “conveniência”. E essa “conveniência” passa também por garantir horários de funcionamento adequados à vida ativa. Alguém que tenha filhos em idade escolar tem grande dificuldade em faltar ao trabalho, retirar um filho da escola e ir a uma consulta num centro de saúde. É expectável que os serviços públicos consigam adaptar-se para suprir essas necessidades. Por outro lado, é preciso conseguir criar respostas alternativas às consultas presenciais; de termos um contacto telefónico ágil. Enfim, de ter a capacidade para resolver os problemas das pessoas de forma ágil. A atratividade dos CSP passa por garantirmos essa qualidade e “conveniência”, tal como a resolução de problemas. Evidentemente, não há uma solução tipo “bala de prata” que vá resolver tudo, mas há um conjunto de iniciativas que os cuidados de saúde primários podem adotar ou rever.

HN- Tem-se falado na possibilidade de avançar para modelo C e para novas parcerias público-privadas. Acha que isso é possível em termos do contexto ideológico?

AL- Sinceramente, não creio que exista uma razão plausível para os modelos C não serem equacionados. Os modelos A, B e C das USF foram criados por um governo do partido socialista. Uma questão era ter todas as unidades em modelo C, outra era ter alguns, até de natureza experimental, e permitir uma comparação com os outros modelos.

Nos países que evoluíram para esse tipo de modelos – aliás, muito similares ao nosso, em que os médicos de família e os enfermeiros de família são funcionários públicos –, como é o caso da Suécia, avançou-se para modelos similares ao modelo C, por exemplo, através cooperativas de profissionais de saúde. Obtiveram-se excelentes resultados. Por exemplo, para aumentar a atratividade, os médicos começaram a dar o seu número de contacto direto aos seus doentes.

O modelo C tem outra grande vantagem. A realidade sociológica da população ativa, e nomeadamente dos jovens médicos, é bastante diferente da realidade de há 20 anos. Se há 20/30 anos a expectativa era ter um emprego para a vida e cumprir os horários das 9 às 18h, hoje os jovens médicos querem maior flexibilidade. O modelo C pode permitir atrair jovens médicos que atualmente estão a sair do serviço público, muitas vezes até a sair da medicina. Modelos em que são eles a gerir o seu tempo, o seu negócio, a sua atividade.

A primeira coisa que temos de fazer é perguntar aos jovens médicos e enfermeiros se adeririam a um modelo C mais facilmente do que a um modelo atual. Nós vemos a quantidade de vagas para Medicina Geral e Familiar que não são preenchidas. Isso deve-nos levar a pensar que podemos ter de rever o modelo de relacionamento com os jovens médicos. Neste aspeto, os modelos C podem ser uma boa resposta a estas questões.

HN- Como é que se consegue evitar o desastre do aumento do número de utentes sem médico de família?

AL- Não podemos estar surpreendidos com o que está a acontecer. Há vários estudos, entre os quais o da Professora Paula Santana, da Universidade de Coimbra, inicialmente para a Ordem dos Médicos, sobre este problema demográfico dos médicos. Repare que o próprio Estado fez um enorme esforço para aumentar o número de vagas para Medicina. Se no início dos anos 90 tínhamos cerca de 200/300 alunos a entrar em Medicina, hoje temos a sair das nossas faculdades, todos os anos, mais de 1500 novos médicos.

Nos últimos anos temos tido uma enorme incapacidade para perceber e atender às expectativas dos profissionais e que não basta abrir um concurso público para as vagas serem preenchidas. Por outro lado, temos um desenvolvimento do próprio setor privado que compete pelos mesmos recursos do setor público.

HN- Há soluções previstas há imensos anos. Porque é que nunca se avançou?

AL- Existem dificuldades financeiras, técnicas e políticas para resolver estas questões. Eu creio que a equipa ministerial está atenta a estas questões. Creio que estão a decorrer negociações sobre estas matérias. Há uma responsabilidade partilhada entre os sindicatos e o Governo para melhorar os índices de satisfação dos profissionais, a atratividade e a retenção dos profissionais no Serviço Nacional de Saúde.

Não podemos atribuir a responsabilidade do desenvolvimento profissional unicamente ao Estado, apesar de ser o grande empregador. Existem responsabilidades partilhadas, entre a Ordem dos Médicos, os sindicatos e o Estado, no desenvolvimento de uma carreira e de modelos remuneratórios/contratuais que sejam minimamente atrativos para os médicos, reconhecendo que as expectativas dos novos profissionais são diferentes de alguém que hoje tem 40 ou 50 anos. Têm de ser criadas condições e flexibilidade suficientes para que todos se sintam bem dentro do serviço público de saúde.

Não é só uma questão do Ministério da Saúde ou do Ministério das Finanças. É uma questão também das ordens profissionais – neste caso, da Ordem dos Médicos – e dos sindicatos que representam os profissionais, para encontrar soluções variadas que permitam chegar a um ponto em que os profissionais se sintam atraídos pelo serviço público e motivados por ter um propósito, de transformação do serviço público e de prestar melhores cuidados de saúde à população.

HN- Qual é a sua expectativa para o que vai acontecer nos próximos anos se as coisas correrem moderadamente bem?

AL- O que nós sabemos é que se estivermos parados e não procedermos a uma transformação dos serviços públicos, será dramático. E nos serviços públicos de saúde ainda mais, pela evolução tecnológica e pela expectativa das populações. Se tivermos inação do ponto de vista da gestão, isso vai conduzir a uma deterioração dos serviços públicos. A minha expetativa em relação à equipa ministerial e à equipa da direção executiva é que sejam capazes de preparar o futuro dos serviços públicos de saúde, e não estarem focadas na perpetuação do serviço público de saúde de há 30 ou 40 anos.

HN- Nota final.

AL- A minha nota final é de positividade perante o futuro. O sucesso do SNS não é só um sucesso da direção executiva ou do ministro da Saúde. É claramente um desafio que deve envolver todos os profissionais. A gestão deve ser responsabilizada e todos os profissionais devem ser confrontados com este desafio, porque só assim conseguiremos transformar o SNS e atingir resultados que os Portugueses desejam.

Entrevista: MMM

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