António Correia de Campos, antigo ministro da saúde

Prioridades

08/03/2023

Apesar do amolecimento estival, quem frequente os media recolhe a sensação de o nosso SNS se encontrar em estado calamitoso. E, todavia, hospitais e centros de saúde continuam a tratar cada vez mais e melhor os doentes que os procuram. Na verdade, para 75% da população este é o seu serviço de saúde, no qual se habituaram a confiar. E confiam.

As notícias sobre greves constantes, declarações de desresponsabilização, concentrações temporárias de serviços de atendimento permanente, reação à vinda de médicos estrangeiros (esquecendo que mais de mil e quinhentos já hoje nos servem), exigências rigorosas de pessoal no SNS sem paralelo em análogas exigências no privado, centenas de milhares de portugueses sem médico de família (esquecendo que mais de um milhão jamais o procuraram, servem-se no privado). Deixam no ar a sensação de que tudo vai mal entre nós. E não é verdade: pelo contrário, a quase totalidade do SNS está intacta e funciona bem.

Usei a palavra “quase”, por saber que muita coisa não corre como devia: médicos, enfermeiros e demais pessoal parecem desmoralizados, por vezes com chefias deprimidas ou até inexistentes, como acontece com a DG da Saúde desde há meses; que muitos hospitais, ACES e centros de saúde têm responsáveis a aguardar confirmação ou substituição; que a articulação da velha com a nova orgânica tarda em surgir; que a informação sobre o que se pretende é escassa; que é quase geral o desconhecimento do futuro próximo, pois apesar de esforços negociais intensos, a paz social no setor parece ainda longínqua; que na ausência de bodes expiatórios mais próximos, o Ministério das Finanças continua a carregar culpas merecidas e imerecidas; que os gestores de proximidade do SNS silenciosamente se queixam, como sempre, de falta de autonomia; que os responsáveis continuam a prometer mais do que provavelmente possam cumprir.

Todos sabemos que o principal são as pessoas, os recursos humanos, os profissionais. Sem eles ou contra eles dificilmente se serve o povo, os utilizadores do SNS, aqueles para quem ele se destina. E as pessoas que serviram bem durante décadas estão cansadas, doridas por verem felizes, folgados e anafados os que abandonaram o barco. Cansados e já descrentes das palmas do COVID, apesar da tranquilidade das suas consciências. Resignados por verem entrar nos serviços os mais pobres, os mais idosos e os mais abandonados dos seus concidadãos. Mantêm todas as reservas morais e fazem das fraquezas forças, quando os casos são graves, pois sabem que só eles e o seu SNS estão em condições de lhes deitar a mão amiga. Estranho paradoxo este, entre a desilusão e a teimosia na luta!

Sim, será sempre e tudo uma questão de prioridades. Haverá dinheiro para remir a banca, salvar a TAP, pagar honradamente a dívida, encolher o défice, tentar mesmo tímidas reformas, porventura na habitação, com sorte talvez na educação e na cultura. Dir-me-ão: e também no SNS. Pois sim, mas não se vê. Sobretudo, não se sente.

Outros artigos com interesse:

1 Comment

  1. Rui Freitas

    Pena que o Prof Dr Correia de Campos quando passou pelo ministério da Saude, não tenha ao menos tentado, fazer a ‘revolução’ que o SNS merece há mais de 30 anos…

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

APEF e Ordem dos Farmacêuticos apresentam Livro Branco da formação

A Associação Portuguesa de Estudantes de Farmácia (APEF) promove a 22 de novembro, em Lisboa, o Fórum do Ensino Farmacêutico. O ponto alto do evento será o lançamento oficial do Livro Branco do Ensino Farmacêutico, um documento estratégico que resulta de um amplo trabalho colaborativo e que traça um novo rumo para a formação na área. O debate reunirá figuras de topo do setor.

Convenções de Medicina Geral e Familiar: APMF prevê fracasso à imagem das USF Tipo C

A Associação Portuguesa de Médicos de Família Independentes considera que as convenções para Medicina Geral e Familiar, cujas condições foram divulgadas pela ACSS, estão condenadas ao insucesso. Num comunicado, a APMF aponta remunerações insuficientes, obrigações excessivas e a replicação do mesmo modelo financeiro que levou ao falhanço das USF Tipo C. A associação alerta que a medida, parte da promessa eleitoral de garantir médico de família a todos os cidadãos até final de 2025, se revelará irrealizável, deixando um milhão e meio de utentes sem a resposta necessária.

II Conferência RALS: Inês Morais Vilaça defende que “os projetos não são nossos” e apela a esforços conjuntos

No segundo dia da II Conferência de Literacia em Saúde, organizada pela Rede Académica de Literacia em Saúde (RALS) em Viana do Castelo, Inês Morais Vilaça, da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, sublinhou a necessidade de unir sinergias e evitar repetições, defendendo que a sustentabilidade dos projetos passa pela sua capacidade de replicação.

Bragança acolhe fórum regional dos Estados Gerais da Bioética organizado pela Ordem dos Farmacêuticos

A Ordem dos Farmacêuticos organiza esta terça-feira, 11 de novembro, em Bragança, um fórum regional no âmbito dos Estados Gerais da Bioética. A sessão, que decorrerá na ESTIG, contará com a presença do Bastonário Helder Mota Filipe e integra um esforço nacional do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida para reforçar o diálogo com a sociedade e os profissionais, recolhendo contributos para uma eventual revisão do seu regime jurídico e refletindo sobre o seu papel no contexto tecnológico e social contemporâneo.

Lucília Nunes na II Conferência da RALS: “A linguagem técnica é uma conspiração contra os leigos”

No II Encontro da Rede Académica de Literacia em Saúde, em Viana do Castelo, Lucília Nunes, do Instituto Politécnico de Setúbal ,questionou as certezas sobre autonomia do doente. “Quem é que disse que as pessoas precisavam de ser mais autónomas?”, provocou, ligando a literacia a uma questão de dignidade humana que ultrapassa a mera adesão a tratamentos

II Conferência RALS: Daniel Gonçalves defende que “o palco pode ser um bom ponto de partida” para a saúde psicológica

No âmbito do II Encontro da Rede Académica de Literacia em Saúde, realizado em Viana do Castelo, foi apresentado o projeto “Dramaticamente: Saúde Psicológica em Cena”. Desenvolvido com uma turma do 6.º ano num território socialmente vulnerável, a iniciativa recorreu ao teatro para promover competências emocionais e de comunicação. Daniel Gonçalves, responsável pela intervenção, partilhou os contornos de um trabalho que, apesar da sua curta duração, revelou potencial para criar espaços seguros de expressão entre os alunos.

RALS 2025: Rita Rodrigues, “Literacia em saúde não se limita a transmitir informação”

Na II Conferência da Rede Académica de Literacia em Saúde (RALS), em Viana do Castelo, Rita Rodrigues partilhou como o projeto IMPEC+ está a transformar espaços académicos. “A literacia em saúde não se limita a transmitir informação”, afirmou a coordenadora do projeto, defendendo uma abordagem que parte das reais necessidades dos estudantes. Da humanização de corredores à criação de casas de banho sem género, o trabalho apresentado no painel “Ambientes Promotores de Literacia em Saúde” mostrou como pequenas mudanças criam ambientes mais inclusivos e capacitantes.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights