HealthNews (HN) – A saúde oral sempre foi colocada em segundo plano no palco das políticas de saúde dos diferentes governos. Quais as razões que explicam esta falta de investimento na saúde oral no SNS?
Miguel Pavão (MP) – Há todo um contexto histórico que é preciso perceber. Trata-se de um fenómeno global e não exclusivamente português. A saúde oral tem sido das áreas mais negligenciadas em termos de políticas de saúde em todo o mundo e, por isso, a Organização Mundial da Saúde, pela primeira vez na história, lançou uma estratégia nesta área, de modo a tentar reverter a tendência verificada nos últimos anos.
No nosso país, quando foi criado o Serviço Nacional de Saúde a medicina dentária e própria estomatologia não foram devidamente integradas nos cuidados de saúde.
HN – Acredita que, com o interesse demonstrado pela DE-SNS nesta área, os cuidados de saúde oral vão sair finalmente da gaveta de “promessas por cumprir”?
MP – Acredito que sim. Desde 2008 que existem algumas tentativas para que isso pudesse acontecer. Na altura, foi criado o cheque-dentista, mas infelizmente não teve uma linha de continuidade. Mais tarde, em 2016, foi criado um projeto chamado “Saúde Oral Para Todos” e, agora, temos a versão do “Saúde Oral 2.0”. Portanto, acreditamos que este programa visa retomar um conjunto de medidas que estavam previstas até 2020 e que não foram cumpridas. E porquê? Por causa da pandemia e porque assistimos à saída de uma ministra que não quis saber da saúde oral e que optou por não dar continuidade àquilo que eram os compromissos políticos assumidos pelo mesmo governo que tinha assinado essa estratégia.
HN – O relatório “Saúde Oral 2.0”, apresentado pelo grupo de trabalho no dia 12 de julho, revela que a partir de 2017 o acesso aos cuidados de saúde oral no SNS começou a diminuir..
MP – Exatamente. E por que razão não teve continuidade? Não estavam criados alicerces que permitissem que os cuidados de saúde oral ficassem consolidados
no SNS. Portanto, o novo relatório permite criar as bases sólidas que são necessárias.
HN – Este documento, do qual fez parte, fala em oportunidades e ameaças à concretização dos objetivos definidos. Do seu ponto de vista, que medidas devem ser implementadas para garantir a tal “proximidade, confiança e equidade no acesso” que a DE-SNS pretende alcançar?
MP – Para haver essa melhoria no acesso temos de conseguir estabelecer uma relação duradoura entre médico dentista e doente. Esta relação não se cria ao fim de seis meses, cria-se ao fim de vários anos. Por outro lado, é fundamental que a medicina dentária seja verdadeiramente introduzida nos cuidados de saúde primários e nas ULS.
HN – Os “objetivos chave” incluem o aumento do número de consultórios, totalizando 350 a nível nacional; a fixação de, pelo menos, um médico dentista no SNS por cada dois gabinetes a funcionar nos CSP e o aumento para mais de 75% da taxa de utilização do cheque-dentista. Estes objetivos podem ser colocados em causa se não for criada uma carreira atrativa para os médicos dentistas?
MP – Sem dúvida. Sem uma carreira especial não vamos ter a oportunidade de ter médicos dentistas no SNS. É preciso que os profissionais se sintam bem, devidamente recompensados e que tenham perspetivas de evolução.
HN – O relatório fala muito em números… Em aumentar o número de gabinetes, de profissionais de saúde e de utilização dos cheques-dentista. Não deveria ter havido uma maior preocupação pelo alargamento do tipo de procedimentos feito nestes gabinetes? O branqueamento dentário, a ortodontia, os implantes ou coroas continuam a ser apontados como “intervenções de natureza estética”.
MP – Este relatório foi feito numa tentativa de fornecer as bases sólidas para o funcionamento dos cuidados de saúde oral. Relativamente às métricas – sobre o número de consultórios, de especialistas a contratar e o número de tratamentos – é fundamental que estes dados existam. Aquilo que não se pode medir é algo que não pode ser avaliado ou melhorado. Nesse sentido, estes números são muito importantes.
Sobre a possibilidade que refere de alargar o tipo de procedimentos de saúde oral, como aqueles que mencionou, penso que estamos muito longe dessa realidade no setor público. A ideia de criar uma resposta no SNS é atuar no âmbito da saúde pública básica, ou seja, de reduzir a carga de doença e de abordagem preventiva e não numa tentativa de recuperação funcional do ponto de vista estético.
HN – Concorda que assim seja?
MP – Sim. Acho que é uma postura muito realista. É preferível termos medidas realistas e possíveis de executar do que estar a prometer tratamentos mais avançados, como implantes ou tratamentos ortodônticos, quando não existem as ferramentas básicas. Temos de ter noção que os primeiros passos devem ir no sentido de estratégia de saúde pública para prevenir a doença. Por este mesmo motivo, as nossas recomendações são exequíveis.
HN – Mas a verdade é que há medidas “básicas” que até agora têm apresentado resultados que têm ficado ‘aquém’ do que seria desejado. Falo, por exemplo, dos cheques-dentista. Muitos médicos dentistas questionam a utilidade prática desta ferramenta, isto porque na conjuntura atual o número de pessoas com baixos recursos aumentou substancialmente e há pessoas que não têm meios para realizar sequer uma desvitalização – mesmo quando têm de pagar apenas a diferença entre o valor do cheque-dentista e o valor da tabela do procedimento. Por outro lado, as queixas também se fazem sentir sobre o tempo de reembolso “excessivamente longo”. Afinal, para que servem estes cheques?
MP – O programa quando surgiu, em 2008, tinha um propósito bastante inovador; o problema foi que não evoluiu nos últimos 14 anos e, pelo contrário, só teve retrocessos. Nesse sentido, julgo que, agora, há vontade política de reformular e de não desaproveitar o cheque-dentista. O grupo de trabalho que participou no último relatório sugeriu a sua desmaterialização e que o acesso pudesse ser conseguido através da própria Linha SNS24. Por outro lado, o valor do cheque-dentista também tem de ser revisto. Em 2008, o valor era de 40 euros, sendo que hoje em dia o valor é de 35 euros… É algo que não faz sentido nenhum. Atualmente vivemos um período de maior inflação.
Quanto ao modelo em si, acreditamos que este não se deve desaproveitar. Temos quase cinco mil médicos dentista aderentes. Contudo, acreditamos que, com a atual conjuntura, da parte da tutela tem havido uma atenção especial sobre esta matéria… Algo que não sentimos antes.
HN – Ainda faz sentido que a primeira referenciação para medicina dentária nos cuidados de saúde primários seja emitida pelo médico de família? Recordo que há mais de 1,7 milhões de utentes sem acesso ao médico de família.
MP – Por isso mesmo é que nós recomendamos que o cheque-dentista não seja emitido exclusivamente pelo médico de Medicina Geral e Familiar. O ideal seria que outros profissionais de saúde do SNS pudessem também avançar com essa ativação do cheque.
HN- Foi avaliada a possibilidade de o médico de família poder marcar consulta com um dentista que pertença a outro ACES?
MP – É preciso perceber a realidade dos centros de saúde. A verdade é que quem acaba muitas vezes por fazer esse trabalho são os serviços administrativos. É absurdo que isto aconteça. Portanto, é preciso criar um conjunto de condições para que haja uma sinalização do cheque-dentista do ponto de vista médico.
HN – De que forma considera que os novos estatutos das ordens profissionais poderão impactar a atividade da medicina dentária?
MP – Os estatutos deveriam trazer uma melhoria do funcionamento e não uma desregulação. Esse é o grande medo que temos. O propósito das ordens profissionais é que sejam as entidades responsáveis pela garantia da qualidade dos serviços prestados pelos seus profissionais.
Entrevista de Vaishaly Camões
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