Fundação Champalimaud: “Neurónios zombies” ajudam a perceber como o cérebro aprende

2 de Abril 2024

Um estudo realizado por uma equipa da Fundação Champalimaud descobriu de forma inesperada "neurónios zombies": células funcionalmente vivas mas incapazes de interagir como habitualmente com o circuito cerebral.

Situado na parte de trás da cabeça, o cerebelo é uma estrutura que desempenha um papel fundamental no modo como o nosso cérebro aprende, adaptando as nossas ações com base em experiências anteriores. No entanto, a forma como esta aprendizagem ocorre ainda não se encontra completamente esclarecida.

A palavra “cerebelo” significa “pequeno cérebro”, embora o número de neurónios desta estrutura corresponda a mais de metade dos neurónios do cérebro. O cerebelo é essencial para coordenar os movimentos e o equilíbrio, ajudando-nos a realizar tarefas diárias com facilidade, tais como caminhar numa rua cheia de gente ou praticar desporto. É também crucial para o processo de aprendizagem que nos permite associar sinais sensoriais a ações específicas. Por exemplo, sempre que pegamos num copo sem entornar o líquido que tem dentro, e que ajustamos facilmente a força aplicada ao peso do copo e ao quão cheio este se encontra, estamos a pôr à prova a capacidade do cerebelo em associar sinais visuais a respostas motoras correspondentes.

Para que a aprendizagem tenha lugar, o cerebelo monitoriza continuamente o mundo exterior e o resultado dos movimentos que nele fazemos. Quando nos enganamos, a informação sobre os nossos erros pode ser utilizada para ajustar a força das ligações cerebrais, conduzindo, ao longo do tempo, a alterações nas nossas respostas comportamentais a sinais específicos. No entanto, não se sabe exatamente como é que esses “erros” ou “sinais de aprendizagem” são representados no cérebro para conduzir a mudanças de comportamento aprendidas. A mais recente investigação do Laboratório de Megan Carey na Fundação Champalimaud, publicada na revista Nature Neuroscience, fornece provas convincentes de que a atividade de uma classe específica de inputs cerebelares, chamados fibras trepadoras, é absolutamente essencial para que a aprendizagem associativa aconteça.

Para estudar o papel das fibras trepadoras e dos seus alvos – as células de Purkinje cerebelares – na aprendizagem, os investigadores realizaram uma série de experiências com ratinhos. Utilizaram uma tarefa de aprendizagem clássica, conhecida como condicionamento do piscar do olho. Nesta tarefa, os ratinhos aprendem a piscar um olho em resposta a um determinado sinal – uma luz, por exemplo –, que antecede um dado acontecimento, tipicamente uma ligeira lufada de ar dirigida a esse olho. Esta tarefa ilustra eficazmente a aprendizagem associativa, mostrando como os ratinhos aprendem a associar um sinal sensorial a uma resposta motora adaptativa – neste caso, o pestanejar.

“Na nossa experiência”, explica Tatiana Silva, primeira autora do estudo, “utilizámos uma técnica chamada optogenética. Este método funciona como um comando altamente preciso para as células cerebrais, utilizando a luz para ligar ou desligar determinadas células de interesse em momentos extremamente específicos”. E acrescenta: “As fibras trepadoras respondem normalmente a estímulos sensoriais como uma lufada de ar no olho. Ao ativar com precisão estas fibras com optogenética, conseguimos induzir o ratinho a pensar que recebeu um sopro de ar, quando na realidade isso não aconteceu. Após estimularmos repetidamente as fibras trepadoras durante a apresentação de um sinal visual, os ratinhos aprendem a piscar o olho em resposta a esse sinal – mesmo na ausência de estimulação. Isto mostra que a atividade das fibras trepadoras é suficiente para produzir este tipo de aprendizagem associativa.”

Os autores conseguiram ainda demonstrar que as fibras trepadoras também são necessárias para que a aprendizagem associativa ocorra. “Quando utilizámos a optogenética para silenciar seletivamente as fibras trepadoras durante a apresentação de um sopro de ar”, explica Silva, “os ratinhos não conseguiram aprender a piscar o olho em resposta ao sinal visual”. A equipa de Carey manipulou de forma semelhante uma série de outros tipos de células do cerebelo, e constatou que nenhum era capaz de fornecer sinais de aprendizagem tão fiáveis como as fibras trepadoras.

Analisando mais de perto alguns dos seus resultados, os investigadores observaram uma reviravolta inesperada. Para manipular a atividade das fibras trepadoras através da optogenética, utilizaram ferramentas genéticas que permitem expressar/inserir nesses neurónios uma proteína sensível à luz, chamada Channelrhodopsin-2 (ChR2). E surpreendentemente, descobriram que, quando tentavam ensinar os ratinhos com a ChR2 a piscar o olho utilizando o método tradicional do sopro de ar, os animais não conseguiam aprender. Como explica Carey, após terem realizado registos sistemáticos da atividade neuronal no cerebelo destes ratinhos, “verificámos que a introdução de ChR2 nas fibras trepadoras alterou as suas propriedades naturais, impedindo-as de responder adequadamente a estímulos sensoriais standard tais como sopros de ar. Essa incapacidade, por sua vez, bloqueou completamente a capacidade de aprendizagem dos animais.”

“O que é notável”, diz Tatiana Silva, “é que estes eram os mesmos ratinhos que tinham aprendido perfeitamente bem a tarefa quando associámos o sinal visual com a estimulação das fibras trepadoras ao invés de um sopro de ar.” Involuntariamente, a equipa tinha alcançado um objetivo de longa data em neurociência: modular padrões específicos de atividade em neurónios específicos, sem interromper completamente a sua comunicação, o que resultou numa intervenção mais natural para elucidar o seu papel causal. Por outras palavras, embora as fibras trepadoras permanecessem espontaneamente ativas e fossem funcionais, o facto de a sua codificação dos estímulos sensoriais estar alterada deixou os animais totalmente incapazes de aprender a tarefa. Isto levou Silva a apelidá-las de “neurónios zombies”: células funcionalmente vivas mas incapazes de interagir como habitualmente com o circuito cerebral.

Devido à subtileza dos efeitos inesperados da introdução da ChR2 nas fibras trepadoras, Megan Carey afirma: “Estes resultados constituem a prova mais convincente até à data de que os sinais das fibras trepadoras são essenciais para a aprendizagem associativa cerebelar. Os nossos próximos passos consistem em compreender por que razão a introdução da ChR2 conduz à “zombificação” dos neurónios e em determinar se as nossas descobertas se estendem a outras formas de aprendizagem cerebelar”. Parece que até os mortos-vivos têm algo a ensinar-nos sobre o mundo dos vivos.

PR/HN

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