Há dois horizontes na política: o presente e o futuro. Se os governantes olharem apenas para o presente, em menos de nada, a realidade destruirá a sua legitimidade e, acima de tudo, destruirão o futuro. Se apenas olharem para o futuro, os resultados irão demorar demasiado a chegar e, quer a pressão mediática, quer a noção de abandono, destruirá também a sua legitimidade e não chegarão “ao futuro”. Ou seja, é necessário jogar as reformas em dois tabuleiros: o de hoje e o de amanhã.
Porém, no caso português de saúde, joga-se mais um «tabuleiro»: o do curtíssimo prazo.
Curtíssimo prazo
1. Estancar a saída de pessoal atualizando salários e negociar nova política horários
O SNS está a perder clínicos a um ritmo elevado. Os salários e os horários públicos, abaixo das práticas de mercado nacional e internacional, empurram médicos, enfermeiros e técnicos auxiliares para fora da prestação pública. A conflitualidade social é uma constante.
Sendo urgente uma reforma, esta é demasiado impactante para ser feito “em cima do joelho”. Deveria haver maturidade para umas “tréguas” com sindicatos e ordens. Tem de haver capacidade de respirar para pensar, fazer um levantamento carreiras e necessidades de pessoal. Há que migrar os salários e horários para um valor, pelo menos próximo, da prática privada ou internacional.
2. Negociar recuperação de listas de espera
A má gestão e a pandemia fizeram com que as listas de espera assumissem valores que, enquanto sociedade, não podemos aceitar. A recuperação das listas de espera deve passar pela prestação pública, privada e social.
Porém, o uso de outros prestadores não públicos pode ser injusto para quem fez mais do que o esperado no público, pelo que deve ser bem explicado e ser muito claro que é uma medida temporária.
Mas vale tudo para recuperar as listas de espera: reorganização de serviços, aproveitar fins-de-semana e blocos, aplicação em massa de cheque cirurgia e consulta, com uma análise e ação rápida aos seus atuais constrangimentos.
3. Implementar programas de rastreio e correção rápidas.
A medida anterior resolve o que já foi diagnosticado. Há, porém, uma lista de espera não conhecida: a de quem nem acesso ao diagnóstico tem.
Do Covid, entre outras lições, aprendemos com a vacinação que é possível montar um processo de saúde para resolver um problema específico. Podemos e devemos alargar este conceito: de processos rápidos, baixa complexidade clínica, e de escala. Um exemplo: implementação de centros móveis para rastreios e correção de cataratas.
4. Resolver os problemas de públicos-alvo muito específicos
Há públicos-alvo e processos que têm de ser alvo de programas de intervenção específicos. Exemplos: gestão da rede de emergências e do INEM, grávidas e doentes oncológicos.
Reforma do SNS
Depois disto, há que começar a desenhar um novo SNS. E começo com uma nota: o ecossistema de saúde deve abarcar os cuidados continuados e cuidados paliativos. Há demasiadas ocupações sociais nos hospitais, cuidados continuados que deveriam ser na verdade paliativos. Se não tivermos em consideração estes cuidados, nunca se terá uma visão global do sistema de saúde.
Fala-se muito de guerras ideológicas na saúde. Creio que é um erro e uma polarização que evita pontes e transformação. Não vale a pena gerir com o medo dos privados, tal como não vale a pena acreditar que o público ou “apenas mais dinheiro” tudo salvará. Tal como vale a pena preservar e cuidar do próprio nome “SNS”, como uma marca da democracia, com forte valor emocional.
É fundamental, sim, conhecer os modelos europeus e o que se acredita, não como fundamentalismo ideológico, mas porque estes são referências claras de onde queremos ir. São experiências testadas em outros países que permitem ver melhores práticas e evitar erros.
Da mesma forma, o objetivo deve ser reformar, transformar, evoluir; não deve ser cristalizar (mais dinheiro não tem funcionado, o modelo tem mesmo de mudar), tal como não deve ser uma “revolução”, que implica disrupção.
Daqui advêm várias condições para uma reforma sustentável a médio prazo:
– conhecimento profundo das alternativas e sem experimentalismos desnecessários;
– conhecimento profundo para um rumo, para uma visão;
– diagnóstico claro e profundo da situação real para que se possa atuar eficazmente;
– capacidade de visão global, mas que as “peças façam sentido como um todo”; equilibrando com descentralização e autonomia;
– coragem e determinação, e capacidade e vontade de deixar amarras ideológicas em prol de pontes e da política baseada em evidências.
Ainda é possível.
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