O córtex é dividido em regiões responsáveis por funções diferentes: áreas sensoriais processam informações do ambiente, enquanto áreas motoras controlam as ações. Surpreendentemente, sinais relacionados a ações futuras, que poderíamos esperar encontrar apenas em áreas motoras, também aparecem em áreas sensoriais. O que estarão a fazer sinais relacionados com o movimento em regiões dedicadas ao processamento sensorial? Quando e onde é que estes sinais surgem? As respostas a estas perguntas podem ajudar a esclarecer a origem e o papel destes sinais inesperados, e de como influenciam – ou não – a tomada de decisões.
Os investigadores abordaram estas perguntas através de uma experiência realizada em ratinhos. Raphael Steinfeld, investigador pós-doutorado e autor principal do estudo, explica: “Para desvendar o que sinais relacionados a ações futuras poderão estar a fazer em áreas sensoriais, pensámos cuidadosamente sobre a tarefa que os ratinhos teriam que realizar. Estudos anteriores basearam-se em tarefas ‘Go-NoGo’, onde os animais realizam a sua escolha ao fazerem uma ação ou permanecendo imóveis, dependendo da natureza do estímulo. No entanto, esta configuração confunde sinais relacionados com movimentos específicos versus movimentos em geral. Para conseguirmos isolar sinais relacionados com ações específicas, treinámos os ratinhos a realizarem uma decisão entre duas ações. Os animais tinham que determinar se um som ultrapassava um determinado limite predefinido, categorizando-o como alto ou baixo, e registando a sua decisão ao lamber um dos tubos — à esquerda ou à direita”.
No entanto, isto não foi suficiente. “Os ratinhos rapidamente aprenderam esta tarefa, respondendo muitas vezes, assim que ouviam o som”, continua Steinfeld. “Para separar a atividade cerebral relacionada com o som, daquela relacionada à resposta, introduzimos um delay crítico de meio segundo. Durante este intervalo, os animais tinham que refrear a sua decisão. Crucialmente, este delay permitiu-nos separar temporalmente a atividade cerebral ligada ao estímulo, daquela ligada à escolha, e acompanhar como os sinais neurais relacionados ao movimento se desdobravam ao longo do tempo, a partir da entrada do sinal sensorial inicial”.
“Para separar as representações neurais de estímulo e de escolha, também foi importante desenvolver um conjunto de experiências que fossem suficientemente desafiadoras para permitir que os ratinhos cometessem erros. Uma taxa de sucesso de 100% dificultaria a distinção entre estímulo e escolha, já que cada estímulo acaba por elicitar sempre a mesma resposta. Ao criar o potencial para erros, poderíamos garantir a distinção entre a codificação neural do som e das decisões tomadas”. Por exemplo, nos casos em que os ratinhos ouvem o mesmo tom mas tomam decisões diferentes (corretas ou incorretas), os investigadores podem examinar se a atividade de um neurónio varia entre as duas ações. Se sim, isto é uma indicação de que o neurónio codifica informações sobre a tomada de decisão.
Após seis meses de rigoroso treino, os investigadores puderam finalmente começar a registar a atividade neural nos ratinhos enquanto estes realizavam a tarefa. A atenção foi dada ao córtex auditivo, a parte do córtex responsável por processar o que ouvimos. “O córtex dos ratinhos e dos humanos é composto por seis camadas, cada uma com funções especializadas e conexões distintas com outras regiões cerebrais”, explica Alfonso Renart, investigador principal e autor do estudo. “Dado que certas camadas geralmente recebem informações sensoriais de regiões cerebrais, enquanto outras enviam sinais para centros motores, foi possível registarmos simultaneamente – pela primeira vez numa tarefa como a nossa, na qual os sinais sensoriais e motores podem ser claramente distinguidos – a atividade em todas as camadas do córtex auditivo”.
“Descobrimos que os sinais relacionados com o som e a escolha exibiam padrões espaciais e temporais distintos”, continua Renart. “Sinais relacionados com a deteção de som apareciam e desapareciam rapidamente, cerca de 400 milissegundos após o som ser apresentado, e eram distribuídos amplamente por todas as camadas corticais. Em contraste, sinais relacionados à escolha, que indicam o movimento que o ratinho está prestes a fazer, emergiram mais tarde, antes da decisão ser executada, e estavam concentrados nas camadas mais profundas do córtex”.
No entanto, apesar da separação temporal entre a atividade do estímulo e da escolha, análises adicionais revelaram uma relação intrigante: neurónios que respondiam a uma frequência sonora específica também tendiam a ser mais ativos para as ações associadas a esses sons. Como explica Steinfeld, “Por exemplo, um neurónio que reage a altas frequências pode ativar num animal a reação de uma lambidela no tubo da direita e noutro animal no tubo da esquerda, sendo que isto depende de como cada um foi treinado, já que mudámos a contingência som-ação. Esta variabilidade entre diferentes animais mostra que a atividade não é pré-definida, mas sim que se adapta através da experiência. Estes neurónios aprendem a aumentar a sua atividade para qualquer ação apropriada, com base na sua frequência sonora preferida”.
Então, qual poderá ser a origem destes sinais de escolha no córtex auditivo? “Curiosamente”, observa Renart, “os sinais sensoriais iniciais no córtex auditivo não parecem prever a eventual escolha dos ratinhos, e os sinais de escolha emergem significativamente mais tarde. Isto sugere que os sinais sensoriais no córtex auditivo não causam diretamente as ações dos ratinhos, e que os sinais de escolha que observamos são provavelmente calculados noutras regiões cerebrais superiores envolvidas no planeamento ou execução de movimentos, que enviam o seu feedback para o córtex auditivo”.
Se estes sinais de movimento não ditam ações, qual poderá ser o seu papel? Talvez sirvam principalmente para integrar e transmitir informações. Por exemplo, estes sinais podem ajustar a perceção do cérebro para se alinhar com uma decisão já em curso, aumentando a estabilidade daquilo que percecionamos. Alternativamente, podem estar a preparar o cérebro para os resultados sensoriais esperados das ações, como o ruído feito pelo movimento, garantindo que as nossas experiências sensoriais correspondem aos nossos movimentos.
No entanto, estas são apenas hipóteses ainda por verificar. “Podemos perguntar-nos então se os sinais sensoriais do córtex auditivo não informam diretamente as escolhas, e se os sinais de escolha que observamos não são na verdade produzidos nesta área do cérebro, então qual é exatamente o propósito do córtex auditivo?”, reflete Renart. “Poderíamos especular que o córtex auditivo está mais preocupado em construir uma experiência consciente do som do que com a transformação sensorial-motora, mas esta é uma história para outro dia.”
Ainda assim, um papel causal não pode ser totalmente descartado, especialmente porque as camadas mais profundas do córtex auditivo transmitem informações ao estriado posterior, parte do centro de controlo do cérebro para hábitos e movimentos. Estudos futuros irão focar-se na identificação das origens precisas destes sinais de movimento e sobre como estes influenciam o comportamento. Por enquanto, podemos adicionar mais uma peça ao quebra-cabeça de como o cérebro converte perceções em ações, e aos mecanismos internos de funcionamento para situações como aquela em que ouvimos passos durante a noite.
PR/HN
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